(imagem: www.humortalouco.com.br) |
Esta cidade tem tanta coisa
interessante! Um pó cinza escuro que se
deposita sobre os móveis, uma obra em cada esquina, muitas mulheres bonitas,
vendedores e compradores de todos os tipos, policiais e viaturas. Todos trazem
sua contribuição ao bem comum e dele se beneficiam, mas alguns se beneficiam
mais do que trazem, como os larápios e os políticos. No caleidoscópio da malha
social, vários tipos se cruzam e interagem, cada um buscando o seu próprio
caminho. A cidade não é mãe, apenas madrasta: pode recompensar ou punir, mas
jamais terá sentimentos. O chão onde se pisa é responsabilidade de cada um.
Ainda
que o chão seja o mesmo para todos, os fortes, os fracos e os onissos. Automóveis,
bicicletas, caçambas e pedestres. Vendedores ambulantes, entre os quais viceja a
dura luta que as classes populares têm que encarar no dia a dia.
Um verdureiro fabricou
sua banca segundo o modelo de um carro de bois, com rodas enormes e uma haste
por onde a mesma é puxada através das ruas. Ele mesmo é o boi. Outro
transformou uma velha bicicleta em uma eficiente pick-up: consegue transportar
na garupa, ampliada através de tubos soldados, as mercadorias de uma loja
completa, que ele dispõe onde quer que haja potenciais clientes. O menino
engraxate produziu uma caixa para seus instrumentos e um apoio para os pés dos
fregueses a partir de restos de madeira coletados em uma marcenaria.
“Estou
trabalhando, não estou roubando ou usando drogas”, respondeu-me ele, com
orgulho, quando interpelado sobre a natureza do seu ganha-pão. Outro me disse que
“a justiça é feita para todos, mas a prisão é só para os pobres”, querendo com
isto significar que, enquanto pobre, deve reger sua vida pela mais estrita
honestidade.
Não bastassem as dificuldades
habituais, os ambulantes agora poderão ser taxados pelo erário público, como
qualquer outro negócio. A publicação da decisão de parte da prefeitura gerou um
motim que perturbou todo o centro da cidade, na primeira operação linguição
patrocinada por carrinhos de ambulantes da história!
Entre os ambulantes, a
classe mais democrática é a dos vendedores de picolé. Tem vendedor de picolé velho,
menino e mulher, mas todos com algo em comum: cruzam a cidade de norte a sul,
lesta a oeste, empurrando seus carrinhos sob um sol de mais de trinta graus.
Cada um tem sua forma de atrair a freguesia:
- “Ó o picolé! (Fom!
Fom!). Ó o picolé! (Fom! Fom!)
- “Picolé Marão, o melhor
da região!”
- “É o picolé!!! ...Picolé
da Sônia!!!
Repare nesse senhor que não
possui o braço direito e empurra o carrinho com uma mão apenas. Meu sexto
sentido diz que ele perdeu o braço em um acidente, possui uma aposentadoria por
invalidez, mas está longe de se sentir inválido.
Repare nesse rapaz com
elevado grau de deficiência visual, que sai às vezes só, às vezes acompanhado
para fazer seu comércio. Na hora de escolher o sabor solicitado pelo cliente, ele
aproxima o rótulo do rosto, como se fosse lambê-lo. Faz o mesmo para conferir o
dinheiro recebido e fazer o troco.
Repare nessa senhora de ar
alegre e bonachão, que para na esquina para contar piada e trocar prosa com os
policiais. Ouça o seu pregão: “- Picolé Boaxá! É o picolé Boaxá! Melhor não
há!”
Repare ainda... bem, esse
não pode mais ser reparado porque é passado. Era aquele que, nas tardes de sol,
marcava sua passagem com uma cantilena intermitente:
- Ó o picolé! Picolé!
picolé!...
Um pregão que avançava do fundo da cidade,
meramente audível entre o latido dos cães e a musica do vizinho, ampliando-se na
medida em que se aproximava da casa e distanciando-se novamente até
dispersar-se no final da rua.
Era pequeno, usava sempre
chinelos de dedo, bem gastos nos calcanhares, e protegia a cabeça com um
chapelão de palha que parecia proveniente da Ilha de Marajó. Estava presente no
bairro de quarta a domingo, assim como em outras partes da cidade. Dezenas de
quilômetros percorridos a pé, idas e vindas – e paradas quando alguém gritava:
“Ê picolé!?”.
Chamava-se Nivaldo, seu
Nivaldo, vim a saber depois. Tinha sido trabalhador rural, vigia e agora
complementava a renda familiar vendendo picolé.
Seria um fato banal
demais para se tornar digno de nota, caso aquele pregão não estivesse
tenazmente incrustado em minha memória. Como o primeiro choro do filho, as
flores da primavera (que nesta cidade chegam no final do inverno) e as
tempestades de verão.
Após algum tempo sem
ouvir o apelo chamativo e lépido, decidi indagar ao meu redor. A resposta veio de
uma moradora da parte alta da cidade: ao voltar de mais uma jornada de
trabalho, seu Nivaldo não resistiu ao esforço de uma subida, justamente a
última, e tombou sobre o asfalto quente, a trinta metros de casa. Quando foram
acudi-lo, estava morto.
©
Abrão Brito Lacerda
01 03 18
Abrão Brito Lacerda
01 03 18
Bravos, meu camarada. Sempre afiando esse olhar observador sobre as práticas sociais cotidianas dos trabalhos e dos dias enormes dessa gente NOSSA, de quem ninguém se lembra e assim ressignifica estas vidas para nós seus leitores.e com isso um mundo não escrito agradece por permanecer vivo entre nós - de nós pela leitura e de você pela escrita.. Bravíssimo...
ResponderExcluirGratíssimo, bravo John. Você que é das letras sabe que não importa o tema, o que conta é o conteúdo. Além disso, em um mundo tão mediatizado, internetizado e robotizado parece que tudo se resume aos barulhos da superfície. Mas lá no fundo tudo continua na mesma. Prefiro ser um escritor anônimo independente a ser um boçal repetente.
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