A
noite caía promissora sobre o South Bank, com ventos ligeiros soprando no
sentido leste-oeste e algumas nuvens carregadas no céu, coisa habitual para a
capital inglesa. Sob os últimos raios de um sol incerto de verão, muitos
turistas caminhavam descontraidamente ao longo do cais, provenientes do London
Eye, um dos últimos ícones arquitetônicos implantados na paisagem dessa Londres
tão moderna quanto antiga, tão calma quanto agitada, tão melancólica quanto
irônica. A roda gigante, com suas cápsulas de vidro que percorrem os 360 graus
em ritmo de caramujo, fazia o último giro da jornada, as luzes se acendiam, era
tempo de buscar novas aventuras.
Eu acabara de fazer uma
ótima refeição no Azzuro, um restaurante italiano localizado sob os arcos de uma
antiga estrada de ferro. Como todo espírito avisado, eu sabia que em Londres é
preciso a todo custo evitar a abominável comida inglesa, a menos que você
possua uma conta recheada de libras para frequentar o English Beef. A split de
vinho rosê, consumida sem moderação, fazia efeito e eu flanava do lado oposto ao
Big Ben com a cabeça cheia de imagens e vazia de preocupações. Debrucei-me
sobre a balaustrada e contemplei o rio: alguns barcos deslizavam sobre as águas
crepusculares e produziam pequenas ondas que cintilavam como feixes multicoloridos.
Tentar encontrar uma musa por ali, entrar em um pub e experimentar um pouco do
brew local ou simplesmente sentar como tantos outros em um banco e ouvir a
música de alguém, violino ou rock and roll? Uma musa, pensei, será difícil
entre essas moças muito brancas, de pernas longas, pisoteando seus saltos altos
com pouca intimidade. Londres não é uma
passarela romântica como Paris, é mais dura, tem também seu lado working class
e outsider. Daí porque essas garotas parecem tão bregas.
Um bar recém-aberto
servia coquetéis verde-escuros enfeitados com uma cereja espetada na ponta de
um palito. “How much?”; “Six pounds.” Até que não estava pela hora da morte. 25
reais por um drink em um barzinho “takeaway”: copo descartável, você compra e
sai bebericando como quiser, desde que não tropece e caia dentro do rio.
Havia um clima de
descontração e fantasia no ar, um blues bem inglês, ao mesmo tempo decadente e
digno. A alguns passos do London Eye, lá estava ela, sentada em um banquinho
dobrável, tocando bandolim - e a música...
Área da corda de sol, de Johann
Sebastian Bach, um morceau escolhido a propósito para combinar com o teatro de
sombras chinesas que animava a paisagem.
De costas para o rio e de
frente para o Jubilee Gardens, ela emprestava seu sorriso doce e ao mesmo tempo
triste aos flashes dos turistas, enquanto era vista com relativa indiferença
pelos londrinos. Com o Tâmisa, o Parlamento e o London Eye como moldura, inclinava-se
em agradecimento para cada moeda depositada no estojo do instrumento, que lhe
servia de coleta E mais um turista feliz levava sua imagem para o outro lado do
mundo.
Após ouvi-la por alguns
minutos, decidi que era chegada a hora de pagar pelo show. Segurei uma moeda hexagonal
entre os dedos, mas, antes de depositá-la sobre o fundo aveludado, conferi o
conteúdo do mesmo (eu receava ter que relatar isso na posteridade): havia muitas
moedas brancas de 50p, várias libras amareladas, alguns euros intrusos, até
mesmo notas, e outros difíceis de identificar, talvez yenes japoneses ou rublos
russos. A mais perfeita democracia monetária, uma lição para as nações em
guerra, reunida no cachê de uma artista de rua. Ela abriu um sorriso que lhe
iluminou o rosto e eu pude ler em seu olhar que ela era de Watford ou
Northwood, na parte norte da cidade, estudante de música
ou desempregada, solteira ou sonhadora, mas não estava ali por acaso.
Não sei se foi Bach, a
tarde ou o drink, mas eu faria tudo outra vez, juro que o faria: o parapeito
pintado de verde-inglês, acinzentado e tirado para o azul, os reflexos dançantes
na superfície do Tâmisa, a sereia que tocava... da qual eu me distanciava na
medida em que seguia em direção a Waterloo Bridge, para o metrô ou talvez o
próximo drink.
A cidade ainda tinha muito
a oferecer.
©
Abrão Brito Lacerda
01 03 18
Muito bom o seu texto. Também não pude deixar de enviar um comentário sobre a sua crônica "Mais velha do que eu", relatando uma breve visita que eu e minha esposa fizemos a sua mãe. Um abraço. Vinícius.
ResponderExcluirOlá, Vinicius, é um prazer vê-lo por aqui novamente. Respondi ao seu comentário sobre a "Crônica mais velha do que eu" por e-mail. Percebo agora que você não o recebeu. Vou reenviar. Inscreva-se no blog como membro na rubrica "Faça parte deste blog". Até breve.
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