(Foto da Web) |
Por muito tempo eu havia sonhado com
Petra.
Desde a
reportagem fotográfica da antiga revista O Cruzeiro que eu tinha recortado e esquecido
dentro do caderno de português, entre anotações feitas às pressas e poemas de
amor a minha colega Loren, tão inacessível para mim na época quanto a própria Petra.
Por isso,
aquele dia no aeroporto era tão especial. Eu ouvia atentamente as instruções da
guia de olhos negros:
- Ônibus da
Royal Tours! Aguardem o momento de embarcar. Keep right! Hold up your passports!
Nosso destino
final seria Wadi Musa, na região desértica do Wadi Rum, aos pés da cidade
esquecida de Petra. Ficamos sabemos isto no vídeo de bordo, com versões em
árabe e inglês:
- A região do
Wadi Rum foi ocupada pela tribo dos Amomitas no século XII antes de Cristo. O
nome da tribo vem da cor vermelha ou amom, típica das rochas da região. No século seis de nossa era, os Amomitas foram
expulsos pelos Nabateus, que deram início à construção da cidade...
Era a
forma de fazer todos dormirem até o hotel, o que era fácil, após 16 horas de
voo.
Assim que chegamos, a guia de olhos negros desapareceu
e em seu lugar surgiu um beduíno de pele dura. E apesar de o hotel ter todas as
“facilities” a que estamos acostumados, o tratamento parecia mais compatível
com uma aventura no deserto: duas horas para subir até os respectivos quartos,
tomar banho e se trocar. O almoço se encerraria impreterivelmente às 14 horas
e, depois disso, todos prontos no hall, com sapatos de caminhada, chapéus e
protetor solar.
Pegamos um jeep até a entrada do parque,
depois seguimos a pé por um desfiladeiro, “aberto por um abalo sísmico no ano
de 515”, conforme se lia no guia de viagem. Chegamos a um largo e nos demos de frente com um edifício talhado na
rocha púrpura:
- El Khazneh! declarou o guia, batendo com o cajado.
A fachada era imponente, com a de um templo grego. El Khazneh ou “Câmara do
Tesouro”, é o edifício mais famoso de Petra e também um dos melhores
preservados. Não apenas a fachada revela detalhes do antigo esplendor, mas
também o interior é impressionante, com afrescos e amplos leitos talhados igualmente
na rocha.
Percorremos
em seguida os vestígios do sistema hidráulico, orgulho da cidade antiga. Depois
fomos ao teatro romano, onde Ésquilo e Sófocles teriam sido representados.
Ao cair da tarde,
quando retornamos ao hotel, minha sensação era de frustração. A cidade perdida
convertida em um cartão postal não era a que habitava minha fantasia. Decidi que,
no dia seguinte, iria encontrar um jeito de escapar à vigilância do homem do
cajado e perambular pelos labirintos daquelas ruínas imponentes, como se
caminhasse em um sonho.
E foi o que fiz. Inicialmente, mesmo ritual e
itinerário: jeep até o parque, caminhada em fila indiana pelo desfiladeiro até
o largo, onde nos aguardava uma tropa de camelos, prontos para nos levar em
caravana até uma tenda montada no meio do deserto, onde o almoço seria servido.
Aproveitei a confusão da chegada para misturar-me aos figurantes de uma
companhia que rodava um filme no local e, livre como um pastor de cabras, comecei
a explorar a área.
O GPS indicava os limites do parque. Havia
escavações, protegidas por tapumes. Atravessei a cerca e cheguei a um sítio
onde trabalhavam quatro arqueólogos, dentre os quais uma jovem de cabelos castanhos
e rosto oculto sob um enorme chapéu. “Uma pequena sábia”, pensei. “Deve ser filha
do professor tal, provavelmente aquele de óculos ali.”
- Professor
Pasquiat, apresentou-se o de óculos, Universidade da Basiléia.
- Carlos
Boaventura. Sou um turista brasileiro. Estão trabalhando aqui há muito tempo?
- Iniciamos o projeto há três anos e
ele deve durar mais uns três.
Como eu não sabia mais o que perguntar,
ele tomou a iniciativa:
- Este local era
uma espécie de banco ou casa de câmbio. Já encontramos moedas e outros
artefatos
- Regardez...
A “pequena
sábia” levantou os olhos e estendeu alguns objetos com a ponta dos dedos.
- Moi, c’est Annie.
- Annie Pasquiat?
- Non, Annie Rouvert.
Ela não era
filha do professor Pasquiat como eu tinha imaginado.
- Por que veio
trabalhar em um lugar tão inóspito?
- Porque sou
arqueóloga. Quando surgiu a vaga na equipe do professor Pasquiat, não pensei
duas vezes. E você? Não tem cara de arqueólogo.
- Estou
visitando Petra para realizar um sonho infantil.
Apontei para a
moeda na palma de sua mão, que parecia um mapa do tesouro, com um “X” marcando o
local do cofre, e perguntei:
- Vocês
consultam algum “mapa do tesouro” para escavar?
Ela achou graça
na piada:
- Temos um
planejamento rigoroso de trabalho. Removemos o material lentamente, catalogamos
e fotografamos tudo.
- Lá no hotel
falaram muito do passeio noturno. O que me diz?
- Você se
refere à visita das ruinas iluminadas por archotes? É um must-do.
E, após alguns
segundos:
- Escuta, tenho
que retornar ao trabalho agora, mas pode me procurar mais tarde no Península
Hotel.
- À ce soir...
O Península não era apenas mais um hotel em
Wadi Musa, era uma espécie de república de estrangeiros em território
jordaniano. Encontrei Annie no lobby,
com pontualidade suíça. Ela usava slacks
acetinados e blusa de mangas longas, bastante recatada, como convinha à cultura
local. Trazia ainda um hijab que lhe
cobria a cabeça e os ombros e lhe dava um ar exótico.
- Senhorita Sherezade...
Ela riu.
O homem do cajado estava de volta, com uma
energia ainda maior. Fez-nos entrar em uma fila juntamente com dezenas de outras
pessoas e proferiu as severas instruções para o passeio noturno, novamente
traduzidas por um intérprete:
- Manter silêncio! Não sair de ordem! Nada de
parar para fotografar!
O caminho através do desfiladeiro estava demarcado
por velas e archotes que bruxuleavam ao vento da noite e davam ao cenário um
caráter solene. Chegamos ao El Khazneb e assentamo-nos
sobre tapetes para assistir a uma representação da vida da cidade no tempo dos
Nabateus.
Era proibido conversar, então cochichamos:
- Quando você retorna à Suíça?
- Dentro de dois meses.
- Eu volto amanhã. Tenho voo em Amã às 15 horas.
Ela levantou o véu para ocultar nossos rostos. O espetáculo ia começar,
era agora ou nunca:
- Posso visitá-la no hotel esta noite?
- Não!
Fiquei mais rubro do que a fachada
iluminada do El Khazneb.
Após a salva de fogos de artifício que saudou o fim da representação,
ela afastou o véu e disse:
- Olha, sobre aquela sua pergunta...
©
Abrão Brito Lacerda
27/02/18
Puxa, acabei me sentindo lá.
ResponderExcluirBela viagem, acabei de fazer!
Fora a ficção, tudo o que eu expressei sobre o meu desejo de conhecer Petra é verdade.
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