- Ê cristão, dá
uma ajudinha pro cego?
- Que ajudinha,
que nada, velho. Você quer dinheiro pra beber cachaça!
- Pois não é? Com
essa chuva e o ceguinho de pé no chão, tem mesmo que esquentar o bucho.
De fato, chovia
muito na cidade. Pra falar a verdade, chovia demais. Chovia tanto que as ruas
viraram lagoas e intrépidos minadouros borbulhavam no barrado das casas. Improvisou-se
até mesmo um transporte de canoas entre os dois lados do comércio, onde antes
havia uma ponte, levada pela chuva.
- Chuva assim, só
em cinqüenta e nove, ano em que se perdeu toda a safra de feijão.
- É, me lembro.
Cheguei a pescar cromatás à mão, no quintal de casa.
- E eu pesquei na
panela. Minha casa pegou um metro de água e os peixes saltavam diretamente dentro
do caldeirão!
- Que Deus abençoe
os pobres sem casa...
Mas a chuva não
atrapalhava Odônio e Ozorino. Os dois bravos argonautas singravam as ruas inundadas,
detendo-se diante de um armazém, uma farmácia, um bar ou sapataria, enfim, onde
houvesse um aglomerado de gente capaz de engordar a féria do dia.
Odônio era o cego,
Ozorino, o guia.
O primeiro
trajava calça de brim e camisa estampada desabotoada. O segundo, calça jeans e
camisa de malha, onde se lia: “100% safe.
Be one of ours.” As roupas molhadas e as gotas de chuva que lhes ornavam os
cabelos davam-lhes um ar esmaecido, como personagens saídos de um quadro de Bruegel.
Iam sorridentes,
de grupo em grupo. Odônio com um cajado rústico de madeira à mão direita e a
mão esquerda sobre o ombro de Ozorino. Levavam bornais cruzados sobre os
ombros, onde carregavam os mantimentos.
- Vocês não têm
medo de morrer de resfriado, não, velhos?
- Que nada, para
nós não tem tempo ruim.
- Dê uma esmola
pro cego!
O outro percorria
os bolsos, à cata da moeda de menor valor. Odônio a recolhia com mão úmida.
Depois do
périplo, era possível encontrá-los bem instalados em algum balcão de boteco,
onde eram objeto de piadas sobre guias e cegos. Parece até que eles mesmos as
estimulavam, pediam duas pingas e uma porção de torresmo. No final, ganhavam a
conta.
Quando chegavam
em casa, no outro lado da cidade, tentavam contar a féria do dia. Odônio sabia adivinhar o valor
das notas pelo tato, nisso ele era melhor do que Ozorino. As notas de um
cruzeiro eram de um verde frio, as de cinco, um laranja quente, e eram maiores.
As moedas eram facilmente reconhecíveis e ele podia contá-las com maior rapidez
que um vidente.
- Sete cruzeiros
e oitenta, dizia Ozorino, que sempre se atrapalhava quanto a conta passava de
cinco. Mas com essa chuva – prosseguia -, até o dinheiro desaparece. Ouvi na
televisão que um caminhão com dinheiro foi levado pela enxurrada no Rio de
Janeiro.
- Não, doze
cruzeiros, respondia Odônio, mostrando a seu companheiro a diferença entre as
cédulas. Não vou mais voltar à praça.
- Também não vou,
completava Ozorino.
Depois, explodiam
em grossas gargalhadas. Ligavam a televisão preto e branco metida no fundo do
quarto-cozinha e seus olhos brilhavam na escuridão.
Ω
Abrão Brito Lacerda
27/02/18
Abrão, você aprendeu a manipular os temperos das palavras, como Saramago fazia tão bem.
ResponderExcluirDesejo muitos bons frutos futuros. É sempre passar aqui pra um descanso!
Obrigado pelo incentivo e pelos votos, Zé. Neste pouco tempo de trabalho com as palavras,tenho observado duas reações distintas: o leitor "comum" gosta e se manifesta; os "acadêmicos" e "intelectuais" não se permitem usufruir, tomam reservas, dizem "é interessante, mas Machado de Assis e Guimarães Rosa..." Eles só pensam por modelos, nem sequer percebem a inventividade do texto. Você deve estar acostumado a este tipo de comentário em relação a sua pintura.
ResponderExcluirO Vento Sul está totalmente pronto, inclusive com ilustrações. Falta folgar o bolso para assumir o compromisso de publicar. Tenho trabalhado com este projeto em mente. Tenho como lançá-lo aqui em Timóteo, em BH e na Bahia. Mas a conta é alta...