A furreca, com quatro
alto-falantes abertos, anunciava imperiosamente a “chegada do Gran Circo de
México nesta cidade – Feras, trapezistas, palhaços e mil, mil e uma atrações! O
mágico Mefisto, os irmãos González, os maiores trapezistas do mundo! E a grande
atração internacional: o Centauro!”
O Centauro? O que
raios isso queria dizer? Um desconhecido animal? Uma nova forma de ilusionismo?
Um barco alado?
“O centauro”,
prosseguia o locutor, “a figura mais marcante, jamais vista nos picadeiros de
todo o mundo. Ele transformará seus conceitos, elevará sua mente, despertará
seu desejo.”
Palavras
portentosas demais para passarem despercebidas, sobretudo num lugar onde
praticamente nada acontecia de novo desde a chegada do rádio de pilha, o qual
havia despertado comentários assustados, tipo “mas quem é mesmo que está
falando aí dentro?” ou desde o sobrevôo do primeiro avião nos céus da cidade, o
que, dizem, levou gente a fugir para as montanhas ou até mesmo afogar-se nas
águas do rio. E ainda mais prometendo “uma noite inesquecível aos senhores
espectadores”.
Devo admitir que
lograram sucesso. O Gran Circo de México esteve cheio desde a estréia.
Entre a trupe, uma figura esquisitóide, camuflada numa
espécie de macacão vermelho brilhante, cabeça espetada num capacete igualmente
vermelho, ornado de uma estrela na frente, exibia-se todas as noites no ar e na
terra. Levava ainda luvas e galochas de borracha bem justas, talvez herdadas
dos astronautas da Apolo 9, aquela que levou o homem à lua. Locomovia-se, no
entanto, com enorme habilidade pelo picadeiro, no trapézio, na arena das feras,
no globo da morte, de onde saía com um salto mortal espetacular.
Falava pouco, e,
quando o fazia, contracenava com um inusitado parceiro, o palhaço Pipoca. Este
último atrevia-se nas mesmas proezas do Centauro, mas dava-se irremediavelmente
mal. Despencava do trapézio como um cacho de bananas, deslizava trôpego com a
moto às costas no globo da morte e as feras não o deixavam sequer dar um passo
adiante.
O diálogo entre
os dois era mais ou menos assim, aqui reportado com a ajuda de um anão que
segurava a corda do trapézio por detrás dos tapumes:
- Sabem por que o
Centauro é todo vermelho? - Porque se borra de medo ao entrar na arena!
- Ora, Pipoca, já
fiz isso milhares de vezes, os bichos tremem ao ouvir o estalido do meu
chicote.
- Mas todo mundo
sabe que você está com medo. Deixa-me ver?
E apalpava o
traseiro do impassível Centauro, para em seguida torcer o nariz numa expressão
de nojo.
O público se divertia e
lá ia o Centauro jaula adentro. Saltava ao lado do domador, tomava-lhe o
chicote e encarava as feras. Saía da arena escalando as grades, subia por
detrás da cena e logo reaparecia dentro do baú do mágico. Em breve estava
voando de trapézio em trapézio como um ultraleve vermelho. Aterrissava
intrépido para delírio de grandes e pequenos.
Em tudo Pipoca o
arremedava desastradamente. E, entre o grandioso e o grotesco, faziam a alegria
do circo.
Foi fogo na
imaginação da cidade. Todos se puseram a especular sobre a identidade do herói,
mantida em segredo. A trupe do Gran Circo era considerável, e, fora das luzes e
maquiagens, podia-se facilmente tomar um anão por um mágico ou um tratador de
elefantes por um faquir. Além disso, o público queria mesmo preencher a
camuflagem do Centauro com o personagem de sua predileção. E havia para todos
os gostos: para as mocinhas, ele era um conhecido ator da TV, que se revelaria
no último espetáculo; para a maioria dos homens era um lutador de vale-tudo
adestrado nas artes do circo; para alguns era um louco, para outros, um primata
muito evoluído.
E a furreca a girar pela cidade anunciado “mais uma noite de furor” e o espetáculo continuando – feras, palhaços, trapezistas e... o Centauro.
Quando o circo já
se preparava para deixar a localidade, sob alegação de que “não se deve esgotar
o interesse do público”, houve surpreende reação popular. Todos reclamavam que
a identidade do Centauro fosse revelada em cena, para poderem, finalmente,
sentir o lado humano do herói.
No dia do
espetáculo final, o povo parecia a ponto de se romper de curiosidade. O Gran
Circo estava inchado de gente - nas arquibancadas, nas cadeiras, em pé na
entrada, sentados em torno do picadeiro. Houve o show de trapézio dos irmãos
González, aos quais se misturaram, como de costume, Pipoca e o Centauro. O
herói do macacão vermelho esmerava-se em suas proezas, mas não conseguia
esconder certo nervosismo. De tudo se aproveitava Pipoca, disposto a ir à forra
contra seu bem-aventurado companheiro.
Pela primeira vez
o Centauro se desequilibrou no trapézio.
Os tambores rufaram, era hora do homem-bala. Pólvora, chumaço aceso, estampido – a platéia soltou um ah! de admiração – e o Centauro voou sobre o picadeiro como uma imensa tocha vermelha. Trinta segundos depois, já reaparecia ao lado do mágico Mefisto. Fez-se serrar ao meio, dançou desengonçado com as bailarinas da dança do ventre, atacou com renovado vigor leões e panteras, com chicote e tudo. Se suava, não se via, mas estava mais intrépido do que nunca.
Ora, se um dia é
do domador, o outro é da fera. Ao estalar da primeira chibatada, a correia
prendeu-se à escadinha da leoa. Os bichos então avançaram sobre ele. Desprovido
de melhor recurso, o Centauro deu meia-volta e escalou os degraus até o topo,
pairando ali onde algum felino deveria estar. Foi seguido pelo leão. Teve então
que saltar através do arco de fogo. Uma tocha acendeu-se em seu traseiro e o
pobre disparou em ziguezague pela arena, seguido pelo leão, a leoa e a onça
pintada. O público, atônito, aguardava o que parecia ser a apoteose final. O
Centauro tentou safar-se escalando as grades, mas a onça abocanhou a perna de
seu macacão, arrancando-o até os joelhos. Ouviam-se risos, princípio de pânico,
silenciaram-se os tambores.
O Centauro
desfez-se do macacão como pôde e atirou o capacete em uma direção qualquer,
soltando um uivo que fez estremecer o circo.
Foi neste momento
que uma figura resoluta saltou para dentro da arena. Vendo padecer seu
companheiro, Pipoca não teve dúvida: Recolheu o chicote à frente das feras,
fê-lo estalar com bravura e, para surpresa geral, obrigou os bichos a recuarem
para dentro das jaulas. Explodiram aplausos e assobios, podiam-se ouvir soluços
comoventes, orações em voz alta.
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