Diferentemente
de seus outros livros, desta vez o Abrão Lacerda, como o observador da natureza
humana que é – esteja ela nos objetos, nos animais, na natureza e, pasmem, nos
humanos – o monge budista que nele habita, não inventa, desta vez, personagens.
Ele,
com esse senso de quem filosofa sentindo e escreve como não quer ensinar, mas
quer, prepare senso e sensibilidade para sofisticações dessas. E tudo isso é
novo na obra desse autor que transmuta a narratividade a cada novo livro - que
inicialmente, no livro Vento Sul, usou de um narrador criança de roça e sua cidade
de bolso dessas do interior, naquela mágica idade entre 10 e 13 anos, no tempo mágico
da molecagem, entre a criancice e a pré-adolescência e contando com praças,
quintais, lagos e riachos. Quem obteve essa
graça de viver tempos assim numa pacata cidade do interior ou numa casa de roça
e de fazenda sabe que isso é mesmo uma graça. Esse é tom de seu livro de estreia,
o Vento Sul. Mais tarde, exercitou o narrador maduro e bem humorado de O Amor e
Outras Tolices, cujo título não engana, é mesmo para rir das aventuras de
jovens universitários pela capital mineira. Mais recentemente, fez vir à Luz
uma obra toda composta de diálogos, assumindo a voz dramática, ao estilo
teatral. Aguardem que vem o seu Marília, Não., em que o Abrão exibe –
certamente do mestre Machado de Assis - com maestria a exploração dos trios de
parceiros e dos triângulos amorosos.
De invecioneiro que é, ele inventa um conto, mas ainda anda orientando
seu outro trabalho para outra aventura: a de um conto de mistério e assassinato
que já se chama A Morte no Olhar – prepare seus olhos.
E
agora amadureceu o seu velho truque de
estilo que faz parecer que é fácil para quem lê essa treta de escrever e traz
esse belo livro – Retratos em Preto Branco -, que exibe para o leitor outro
exemplar de suas práticas narrativas, e que acena que, para além da criação de
imagens e enredos na mente do leitor, que é o dever mais básico dos narradores,
ele se aventura com uma prosa leve, intimista e dotada de uma senso de
observação que recorta do mundo das emoções e dos sentimentos gestos de
significar vivências intimas de pessoas, dentre elas dois matutinenses, a Neusa
e Este que vos fala.
O
autor dessa invenção, composta de mais de trinta crônicas, que agora você
leitor poderá desfrutar, é daquelas pessoas iluminadas, capazes da alegria e
que agem naturalmente. Como quem
aprende a criar asas, ele passa natural e tranquilo por essa nova metamorfose
de suas práticas de escrita. Não à toa é ele um escritor quase buda, seja pela sabedoria,
seja pela facilidade que não surpreende mais, quando se sabe que ele é, também,
graduado em História pela UFMG, que escreve como quem pinta quadros ou executa ao
violão uma canção e sobe aos palcos para mostrar as que compõe – 99,9% Roquenrou!
-, e ainda ensina francês, inglês, espanhol e português. A causa dessa imensa dedicação ao conhecimento
de si, das mazelas do mundo e das artimanhas do destino, aleluia, é a força
solidária que forma esse olhar com que recorta da realidade cotidiana a força
humana e genuína de muitas pessoas, sem fazer delas personagens ou seres de
ficção.
O
tom é intimista, o que torna a leitura algo como participar de uma cerimônia do
chá ou praticar ikebana com um monge,
com quem se propõe a tematizar assuntos espinhosos como a morte, em mais de um
texto, ou líricos, como o voo e o canto dos canários, além de variados outros, como uma gata que dá
à luz em um terreno baldio, um coelho doméstico, uma antiga mesa, dois galos,
um bellman que exibe seu ar búdico em um hotel do interior, uma artista de rua
em Londres, um padre, uma beata, uma imigrante japonesa, um luthier, dois
matutinenses e, até mesmo, urgh!, coisas difíceis de engolir separadas, imagine
juntas, como rosca e martini.
Recortes
do mundo, sensíveis crônicas em 3x4 precisos de 35 retratos em Preto e Branco, Abrão
Lacerda premia seus leitores com um belo apanhado de suas muitas histórias. Que
venham mais outras, nessa sua incansável exploração da tal narratividade.
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