Os
linguistas são seres raros, desses que dissecam a língua como se fosse um
porquinho da índia em um experimento de laboratório. Usam termos difíceis,
próprios aos alquimistas (não tenho certeza, mas a verdade é que conheço
linguística tanto quanto alquimia). Você pensaria que estão falando para extraterrestres,
até descobrir que está por fora da língua pátria e confundiria um chiste com um
uptaken, a ponto de não entender a graça que o doutor João Batista Martins
aprontou desta vez.
Primeiro
ele fez um doutorando no tema, usou geometria, os signos semiológicos do
Barthes, o idealismo de Platão e outras mumunhas para falar de sua obsessão
pelo humor enquanto linguagem. Mas, na refrega diária de um professor de escola
pública, sobra pouco tempo para aventuras. Quando os alunos perdem o hábito do
palavrão e buscam algo mais produtivo, como o discurso criativo ou o uso
correto dos pronomes oblíquos, já é uma vitória. Essa praticidade, aprendida a
duras penas com o ofício, é muito cara a nosso professor, a ponto de ele
remoê-la durante anos e regurgitá-la na forma do presente livro, uma lindeza
muito bem embrulhada pela editora Literísssima.
E,
como está na moda o “unboxing” disso e daquilo, lanço o unboxing de livro, e
vou além: abro o dito cujo, leio e ainda me atrevo a explicá-lo a gente mais
amadora do que eu.
Primeiro é preciso decifrar esse enigma que
está no título: o que é “perfomatividade” da linguagem?
Vamos
pedir ao Dr. João para explicar:
“Acontecimento
enunciativo que envolve cuidados consigo e com uns e outros, que abriga mitos,
oferece prêmios e riscos, a performatividade da linguagem é um acontecimento
enunciativo e pode conter determinações biopsicossocioculturais diversas, com
deve ser com quase tudo que extrapola essa base ampla e une o mundo
bioquimicofísico ao universo do simbólico, da cultura e das linguagens.”
(p. 14)
A
alquimia não faria melhor. Parece que ele quer dizer que a linguagem que usamos
tem um quê de teatralidade, ela exerce um papel, o qual está cercado de
determinações pessoais, sociais, culturais, químicas, físicas, etc. A parte da
química e física eu vou ficar devendo, mas que nossa linguagem é um retrato do
que somos não há como duvidar. Falamos com a intenção de dizer algo, mas muitas
vezes dizemos o contrário do que falamos… bem, tem riscos e prêmios também, portanto
vamos tentar descobrir o que o Dr. João escondeu entre as páginas.
Aquelas
palavras que você troca com o vizinho na mesa do bar estão traspassadas pelo
discurso do Dr. João: você quer (intencionalmente ou não) mostrar alguma coisa,
ainda que seja sua ignorância.
Mas,
como o humor é produzido dentro disso aí acima, da física, da química e da
cultura?
Calma
que tudo tem sua hora. O Dr. João usa dois capítulos para descrever os
mecanismos da linguagem do humor, porque Roma não foi feita em um dia. Logo no
primeiro, ele mostra a que veio:
“O
mundo recortado pelas lentes do riso, do cômico, do chiste e do humor, passando
pela ironia, recomenda não se levar tão a sério, bem como o contrário, o riso
seria mais sério do que parece ser, e, por isso, não deva permanecer sob os
cuidados apenas dos atores, comediantes e humoristas.”
De
forma alguma, eu, por exemplo, que não sou linguista, invento as minhas piadas.
Já escrevi algumas nos meus livros, e até o Dr. João já tomou conhecimento e
prometeu tirar este autor do anonimato, citando-o oportunamente. Mas o melhor mesmo
é Machado (de Assis), um mestre nessa coisa de alfinetar com ironia e arrematar
com uma camada velada de humor. Em uma das citações do livro ficamos sabendo
que:
“[…]
O humor machadiano [é] uma válvula de escapamento de sua angústia e dos
recalques da sua alma, acumulada através das injustiças da vida, da maldade
humana, do sofrimento físico e moral, do espetáculo da comédia do mundo. É o
disfarce da própria miséria pelo riso dos ridículos humanos. (p. 28)
Caem então as máscaras (ou são colocadas, como
queira). A linguagem é intencional e revela algo para além dela mesma. O
talento de Machado foi transformar em arte aquilo que nós apenas sentimos.
Numa
dada passagem, o Dr. João fala dessa parceria que o humor teve com a
melancolia, a velha melencholia dos renascentistas, por razões óbvias. A
alternativa a ser moribundo é rir, começando por si mesmo. Fingimento que um
poeta português (que aparece depois no livro) descreveu tão bem. Teatralidade
pura.
É
de se imaginar que uma força tão grande tenha gerado voltas e reviravoltas através
da história. Sócrates e Platão queriam botar termo no riso escancarado dos
sátiros, que não respeitavam senhores, doutores e… filósofos! (em uma de suas
comédias, o iconoclasta Aristófanes pendurou Sócrates em um cesto). O
cristianismo herdou o idealismo de Platão e tentou por diversas vezes coibir as
manifestações do escárnio libidinoso da massa (até ser engolido por ele).
Que
me desculpe o Dr. Sócrates, mas o dia em que o riso for ditado pelos filósofos,
estaremos ferrados.
Enfim,
eles admitem que o humor tem um quê de superioridade. É claro: para não
sucumbir ao desastre, só rindo dele. É uma artimanha do “sujeito”, do “eu
lúdico”, do “eu lírico”, do sei lá mais o quê.
Pasárgada,
Os Sapos e outras obras (primas) do Manuel (Bandeira) se sustentam no humor.
Poderiam ser apenas piadas, mas são poemas. Nessa Sócrates e Platão perderam
feio.
[Escrevo
este parágrafo entre colchetes, porque são dois autores pouco lembrados no
livro. Lá na Renascença teve dois caras da pesada, o Cervantes e o Shakespeare.
Assim como foram os pioneiros da literatura moderna, foram também os precursores
dessa forma de rir com segundas intenções que é parte de nossa cultura.]
E
agora esta passagem que, perdoem, me fez cair na gargalhada:
“Afinal,
se o homem é o único animal que ri, ele também é o único animal que engana,
passa cheques sem fundo, esconde os defeitos, sonega a informação; e é capaz de
se dar ao luxo de rir e surpreender, enquanto luta para se manter de pé,
vaidoso e ignorante.” (p. 59)
Conta outra, Dr. João!
Bom,
esses foram os antigos. Na terra da rainha os autores se ocupam do humor há
muito tempo. E alguns caíram de cara na zombaria, movidos por um olhar de
estranhamento ao mundo burguês em ascensão. Os românticos foram por essa também
(quando não preferiam morrer, esfacelados, em seus dramas lacrimosos).
Agora
uma distinção “que me gusta mucho” e que você, leitor noviço, deve também
aprender:
“La
ironia es objetiva, va dirigida contra los demás. El humorismo es subjetivo: en
general se refiere a nosostros mismos” (p. 77).
O autor da frase é o filósofo Schopenhauer.
No
humor há uma forma de ver o mundo com as lentes de dentro.
Desde
o século XIX nossa magna ciência tem se debruçado sobre o humor. Por
coincidência, foi a partir dessa época que aprendemos que se pode rir de tudo.
O filósofo Henri Bergson se interessou pela função social do riso, que teria
sua importância na manutenção do cimento social. E esse autor tem uma teoria
que me encanta, que é a da mecanicidade X o movimento livre (base do humor de
Chaplin, por exemplo). Uma das principais estratégias do humor é quebrar a
rigidez das coisas duras ou tornar rígidas as dinâmicas. O que há de tão engraçado
numa criança imitando um carro? Eu posso fazer o mesmo, mas ninguém vai rir.
Tem
também as estratégias da repetição, da inversão e da interferência de séries. Sem
falar dos absurdos e das contradições. Foi com Bergson que eu aprendi a fazer
humor com palavras, combinar disparates, exagerar, fingir, enfim, duplicar o
sentido, segundo ocultas intenções.
E
mais um monte de coisas sobre a função social do humor. Vou pular, porque
prefiro alquimia e também porque tem outras ideias que me interessam muito e,
espero, também a você, leitor curioso. São aquelas oriundas da teoria da
“economia de prazer” do Dr. Sigmund (vulgo Freud), um dos sábios daquela época
topetudo em que os cientistas queriam “consertar a mente das pessoas” (conforme
o dito espirituoso de um personagem de filme).
“Em
Freud, o humor, o risível das piadas e dos ditos espirituosos são momentos de
transgressões autorizadas para alívio do recalcado, dos temas difíceis, como as
relações tóxicas agressivas e a aceitação do diferente.” (p. 122)
Transgressão do princípio da realidade, movida pelo
princípio do prazer, liberação dos recalques, alívio criativo, no qual o ego
leva a melhor sobre o superego.
O
Dr. Sigmund tinha essa obsessão pelo prazer que só Freud explica.
Mas
todos que fazem piada sabem disso intuitivamente, sem precisar sentar-se num
divã. O mundo do riso é o mundo do lúdico, “o principal sinal de um psiquismo
sadio”. As ditaduras começam com a supressão do riso e do prazer e acabam
quando essas forças repicam com força irresistível. Daí aquelas piadas sujas que
fazíamos sobre os militares no fim da ditadura.
A segunda parte do livro do Dr. João é
dedicada à linguagem do humor propriamente, se eu entendi bem. Ou seja, a
performatividade da linguagem. Então:
“Como
em muitas práticas sociais linguageiras, recorrer ao humor nas interações
discursivas implica antes “saber ler o mundo”, saber “escutar”, saber atentar
para o cálculo da performatividade, planejar a adequação de cada gesto, pesar
os riscos de dimensões escondidas do discurso e que podem surpreender por um
modo de dizer e não por outro, saber calcular as margens de previsão e controle
do agir com as palavras.” (p. 157).
São “jogos de linguagem semiolinguísticos, verbais e
não verbais” que visam o objetivo final do riso liberador. É a linguagem
fingida de que nos fala o poeta português. Fingimento que toma o lugar da
realidade e vice-versa. Um processo que não para, uma piada pode levar a várias
se o interlocutor aceitar participar dos mesmos jogos.
Sobre
os detalhes da discussão de como a linguagem “perfoma” através do humor em suas
diferentes formas, sou obrigado a dar um salto mortal, porque não há outra
forma de explicá-la a não ser mimetizando as palavras do autor. Assim, deixo
aos iniciados buscar isso na íntegra, através da leitura do livro do Dr. João.
Prefiro
mencionar apenas um dos seus esqueletos, através da teoria de dois scripts e um
gatilho de Raskin, que se aplica muito bem às piadas. Basicamente, no texto do
humor há dois lados, duas leituras diferentes, a da realidade e a da ficção
humorística. Entre elas opera o “gatilho” que dispara o movimento entre ambos e
gera a incongruência ou efeito humorístico. O gatilho deve ser acessível ao
leitor ou ouvinte, senão o efeito humorístico não se produz.
Partidário
de uma prática do humor que libera energia lúdica e criativa para tornar
possível o impossível, vejo como o meu maneirismo está longe da concentração
científica do Dr. João. Mas, como em toda prática, uma coisa é o objeto que
você experimenta em primeira mão e outra é explicá-lo, fazendo a tal dissecação
de laboratório. Felizmente é tudo palavra e, tal como no discurso do humor,
entre mortos e feridos escaparemos todos.
©
Muito bom, Abrones!!! Parabéns!!
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