Em
julho de 1979, quando era estudante de técnicas agrícolas em Uruçuca, Bahia, fui
participar de um treinamento no município vizinho de Itajuípe. Nada de
excepcional em princípio, a não ser a carona que tinha conseguido com um dos instrutores.
Enquanto olhava pela janela do carro o desfile monótono das matas de cacau, com
seus variados tons de verde, um fato marcante aconteceu: ele pôs para tocar uma
fita cassete do último álbum de Gal Costa, recém-lançado. A cantora era a favorita da minha geração, seus
sucessos estavam na boca de todos, mas eu não tinha a dimensão de sua grandeza
como artista, ouvia-a simplesmente quando tocava nas rádios.
Até
aquele dia, em que pude ouvir do início ao fim o álbum Gal Tropical, com
direito a reprise. Enquanto as canções se sucediam, a paisagem mudava à minha
volta, ganhava uma inesperada beleza: “Samba rasgado”, a canção de abertura,
mostra Gal em plena forma, com seu mix de potência e controle. Depois vem
“Noites cariocas”, um cristal puro, a ser admirado contra a luz. Em seguida,
“Índia”, uma carícia em forma de canção. Depois “Estrada do Sol”, a bela
composição de Dolores Duran e Tom Jobim, que ganhou sua versão definitiva com
essa gravação. E mais, “A preta do acarajé”, onde ela explora o grave
(lindíssimo) em contraponto a seu clássico agudo, “Dez anos”, quando flerta com
seu lado latino americano através de um bolero, “Força estranha”, que terminei
de ouvir com lágrimas nos olhos, de emoção, “Olha”, outro bolero, dançante e
envolvente. Parecia demais para um disco só, e, no entanto, ainda estavam por
vir “Juventude transviada”, que me levou diretamente ao céu, e os frevos com
pitadas de rock and roll, “Balancê” e “O bater do tambor”. Depois de nove canções
intimistas, Gal explode em alto astral e chama todos para dançar. Para encerrar,
sua canção assinatura, “Meu nome é Gal”, onde desfila o lado rebelde e ousado
de uma artista que tinha desafiado os militares, a censura, a crítica e a
caretice.
Depois disso, ouvi tantas vezes o disco que conheço as canções de cor. Para mim, ele é perfeito e representa um dos pontos mais altos de nossa música e de nossa cultura em geral. E pensar que, na época, ao ler uma crítica a respeito no famoso caderno B do Jornal do Brasil (quinta-essência da intelectualidade tupiniquim daqueles tempos) deparei-me com coisas do tipo: “Gal Costa tenta inutilmente equiparar sua voz a uma guitarra elétrica” (referindo-se aos gritos agudos de “Meu nome é Gal”). Ninguém deu ouvidos ao crítico, mais um detrator inútil a cair no esquecimento.
Grandes
artistas não fazem suas carreiras em um mar de rosas. A maioria de nós associa
Gal a romantismo, suavidade, pois é isso que sua voz límpida invoca. Mas quem
viveu a ditadura sabe a barra pesada que foi o final dos anos 60 e o início dos
70. Cantar o amor, a alegria e a liberdade era um ato de rebeldia. Imaginem essa
mulher doce (como a definiu Caetano Veloso) subindo no palco com roupas
extravagantes e sensuais e se afirmando em meio a um mundo machista e misógino,
enquanto seus colegas tropicalistas estavam exilados em Londres. Rebeldia que
nunca se perdeu, diga-se de passagem, apesar de os tempos terem se tornando
mais conformistas e as pessoas menos engajadas. Nas vésperas de completar
cinquenta anos, em 1985, Gal fez uma série de shows nos quais aparecia com os
seios de fora. Foi aquele escândalo. Ela
era importante demais para fazer aquilo, diziam alguns, no mesmo tom dos que
antes censuravam seus gritos.
É
preciso ter raça, é preciso ter força, é preciso ter gana sempre. Os versos de
Milton traduzem a realidade de uma época crucial de nossa história, muito bem
registrada na grande trilha sonora que é a MPB. Uma época em que o mais obscuro
dos regimes políticos conviveu com os mais criativos artistas que já tivemos,
que nos deixaram o legado de beleza e perfeição que constitui o ápice de nossa
cultura e define nossa identidade brasileira.
Gal
Costa é uma síntese de tudo isso, uma amálgama do melhor do Brasil, com
grandeza e dignidade. Junto minha humilde voz à daqueles que a proclamam como a
mais importante intérprete da música brasileira, dona de um timbre único e de um
estilo essencialmente contemporâneo, capaz de abarcar as mais diversas
influências, da bossa nova ao rock and roll.
E
viverá para sempre.
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