Até
que enfim resolvi ler o livro de Flávia Frazão. Se souber disso, ela me mata. Minha
única esperança é tornar públicas essas impressões de leitura, de modo a
conquistar seu afeto e seu perdão.
Porque a alma em ebulição da autora se manifesta a cada poema e ela pode muito bem nos lançar em correntezas e dúvidas das quais não sairemos ilesos. Seu trabuco 38 (na época de lançamento do livro, em 2019 – agora ela vai me matar de vez) parece estar sempre fumegante:
“mãos ao alto
senão atiro
38
é fatal e certeiro
meu bem
o calibre é meu
e de mais ninguém”
[Trinta e oito]
Com
sorte, ela terá péssima pontaria, como a maioria dos poetas, que miram no nosso
peito e acertam o próprio pé.
Não vou ser discreto, porque ela não é. É muito bom vê-la em enlace com o Manuel (Bandeira), que era casto e constante e nos deixou aquele monte de poemas clássicos que salvam do esquecimento os livros didáticos de literatura brasileira.
“Bandeira deu a sentença;
os corpos se entendem
as almas não”
[Sentença]
O
fingimento da arte. Para que a vida material ganhe um pouco de folga, é preciso
colocar uma máscara, atravessar o espelho, como a Alice, ou, simplesmente,
imaginar.
Outra opção é tornar-se acrobata e tentar a sorte nos fios bambos da existência:
“uma professora tão idealista
cozinha, escreve, arruma
foi bailarina, namorada, atriz
menina, mulher, equilibrista
pés delicados em corda bamba
leva a vida por um triz”
[Por
um triz]
Adélia
Prado, Leminski, Homero – cruzes, ela é insaciável!
Neste
passeinho pelo haicai sentimos ecos do poeta paranaense, assim como da geração
mimeógrafo:
“passo que me apronta
ponto de equilíbrio
sapatilha de ponta”
[Ponta]
“olho pedra,
vejo passarinho”
[Surto criativo]
Outro
aspecto marcante é o da contemplação. A mirada contemplativa, com uma conotação
frequentemente sagrada, constrói-se no silêncio e na observação dos pequenos
fatos do quotidiano:
límpida, forte, torrencial
para levar embora toda a maldade do mundo”.
[Chuva]
vai que seja sua bisavó”
[Poema embriagado]
E outras invenções mais sérias, como
a ótima incursão pelo espanhol, de onde lhe saem versos naturais e bem construídos:
“Me gusta mucho el sonido
armonioso de las palavras
como si yo escuchara
la más bela música”
[Flor de Castela]
A
medida da autora se dá nessa tensão entre intimismo e realidade. O primeiro
constitui uma força propulsora, com sua substância etérea de sonhos e ideais. A
segunda a remete às coisas simples, à dor da existência e à natureza crua de um
mundo injusto e desigual. Fantasia e fato: de ambos a autora retira a matéria
fina que a anima.
©
Abrão Brito Lacerda
09 09 22
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