Página de "Pelotudos" de Mario Kostzer. |
Pelotudos é uma gíria de Buenos Aires
cujo sentido depende do contexto, indo do boçal ao arrogante, passando pelo inconsequente,
folgado e aproveitador. Carrega uma ponta de juízo e outra de humor e galhardia,
como costuma acontecer com as invenções do vocabulário popular. Sendo assim, traduz
uma síntese cultural que aproxima o crítico do seu alvo.
A
cidade está cheia deles: nas ruas, nos bares, nos táxis, até nas livrarias que pululam
na Avenida Corrientes, perto do obelisco da Nove de Julho.
Tomei
conhecimento do termo ao frequentar um café da Praça Lavalle, (mais conhecida como
Tribunales pelos locais), logo atrás do Teatro Colón. Emoldurada por uma linda
arquitetura que combina o clássico e o moderno, a praça tem no centro algumas
árvores imensas, que servem de abrigo a casais apaixonados e leitores
empedernidos. Quem está sozinho, lê, seja ao ar livre, seja em um dos inúmeros
cafés daquela zona boêmia da metrópole portenha.
A
praça ficava a três quadras do hotel, daí porque passei a cultivar o hábito (buenairense,
sí) de sentar-me ao sol da tarde, pedir um café
con leche e uma medialuna e
dedicar-me à leitura do periódico, ou seja, do jornal. O tempo justo (pelo
valor da conta) e o suficiente para devorar as ótimas tirinhas humorísticas publicadas
diariamente. E foi no curso de uma dessas leituras que o proprietário (imagino
que o fosse, pela forma como se sentava atrás do balcão de madeira) veio falar
comigo:
- ¿Es
brasileño?
- Sí.
- Lo noté.
Tinha
percebido que eu era brasileiro, porque ria enquanto lia as tiradas (mas elas
não justamente para isso?). Naquele momento, tive este insight: os argentinos são
melancólicos demais para se permitirem o riso fácil. Quando leem uma piada,
riem para dentro e esboçam um gesto insuspeito, como tomar mais um gole de café
ou olhar para longe, para as pessoas que passam, enquanto o cenho ligeiramente
franzido denota uma interrogação existencial.
O
barman (ou o dono) confessou que admirava esse lado espontâneo dos brasileiros.
Arriscou até mesmo algumas frases em nossa língua (que tinha aprendido em duas
viagens por aqui). Disse-lhe que o humor argentino era para mim uma grata surpresa,
pois no Brasil só conhecíamos Mafalda. Foi o mote para ele soltar a palavra que
lhe enchia a boca:
-
Ninguém melhor do que Quino para descrever os pelotudos deste país!
Eu
estava, portanto, no país dos pelotudos, e nem tinha desconfiado. Mas, ao invés
de perguntar o que significava, preferi prosseguir na conversa e, depois de
cinco minutos, tinha ouvido a palavra-valise mais três ou quatro vezes. Fiquei
sabendo que aquelas árvores pelotudas da praça eram tílias, símbolo da cidade (e
do país), que muitos pelotudos sem teto passavam a noite ali e que o pelotudo
do seu time não tinha mais chances no campeonato argentino de futebol. Recebi
igualmente dicas dos humoristas argentinos mais pelotudos e onde encontrar seus
álbuns, não longe dali, na pelotuda Avenida Corrientes.
E
foi assim que fui apresentado a Fontanarrosa e a seu personagem Inodoro
Pereyra, um gaúcho quixotesco, pretensioso, romântico, falastrão e incorrigível,
como a designar certo substrato nacional.
Nas
mesmas Ediciones de la Flor (que nome mais bonito para uma editora!), o
badalado Quino dobra a receita da reflexão filosófica e carrega ainda mais nas
tintas melancólicas, ao mostrar situações quotidianas e comportamentos
estereotipados. Os sentimentos mais fundos de sua gente são revisitados e sobre
eles o autor lança um último riso, sarcástico, antes da queda no precipício.
E,
para terminar, a obra de Mário Kostzer, intitulada exatamente “Pelotudos
(Ejemplos de todos los colores a elegir)”, que se pretende um manual da
pelotudez (ou pelotudice). Exemplos de pelotudos de todas as classes,
profissões e cores são decorticados com ironia e perspicácia, associadas ao
humor prosaico que emana dos tipos populares (com os quais o leitor busca se
identificar). Mas não é simples humor, há uma reflexão filosófica (séria?) sobre
essa tendência social, com citações e pensamentos. Como esta frase de Oscar
Wilde a respeito das pelotudices do trabalho: “O trabalho é o refúgio dos que
não têm nada a fazer”, ou esta de Hermann Hesse sobre o poeta pelotudo: “Fazer
versos ruins dá mais prazer do que ler versos bons”.
A
força do termo vem do seu aspecto multifacetado, que estimula cada um a
acrescentar-lhe mais alguns sentidos, como eu passei a fazer.
Munido
dessa porção de galhofa silenciosa, comecei a ver a capital argentina e seu
povo com outros olhos. Que graça sanguínea a das pelotudas dançarinas de tango,
que alçam voo com seus vestidos de cavas profundas! E os pelotudos vendedores
de quinquilharias, que nos acossam por toda parte! Os pelotudos (e habladores) motoristas
de táxi, que erram propositadamente o caminho! O garçom pelotudo, a
recepcionista do hotel (pelotudíssima!), o policial, o turista.
No
final, estava tão à vontade que acabei me sentindo um.
©
Abrão Brito Lacerda
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