Entre
os números cabalísticos não consta o 59.
Seria
ele um número qualquer, como 1016 e 21, desses que se habilitam a saltar de
bungee jump ou andar de monociclo na corda bamba, só para sair do ostracismo?
Muitas
evidências indicam que não. Cinquenta e nove é um coroa enxuto, com muitas
histórias pra contar. Meu pai, que não lia jornais e mal ouvia rádio, tinha uma
estranha fixação por esse ano, ao qual reputava tudo de grave e importante que
conhecia (ou supunha conhecer). Falava da grande enchente de 59, do fim da
guerra (não sei a que guerra ele se referia), da copa de 59 (meu pai era totalmente
ignorante em matéria de futebol e só poderia falar abobrinhas a respeito). Mais
tarde eu tentei corrigi-lo, afirmando que a copa tinha sido no ano anterior.
Foi como convencer um camelo a passar pelo buraco de uma agulha.
A calça comprida já tinha se tornado item comum no guarda-roupa feminino e
atraía olhares nas capas das revistas e nas ruas. O pintor Cândido Portinari
produzia alguns dos seus quadros mais famosos. O primeiro LP de João Gilberto,
Chega de Saudade, era lançado no mês de março daquele ano e consolidava o novo
gênero musical (a bossa nova), que revolucionaria a música brasileira e
lançaria ondas de influência através do planeta.
Se
levantarmos a mirada do Brasil, até então um imenso domínio rural que iniciava
sua aventura sertão adentro (através da abertura das grandes rodovias e da
construção da nova capital), descobriremos que meu pai não estava delirando e
que alguma coisa em sua sensibilidade dizia que aquele ano de fato tinha mudado
o curso da história. Um dos seus aliados é o jornalista Fred Kaplan, autor de
um livro intitulado “1959: o ano em que tudo mudou”. Para o americano, o último
ano dos cinquenta representou um momento em que a sensação de que as coisas
estavam mudando e de que era preciso abraçar o novo se tornou evidente na
sociedade.
Como
em matéria tão séria não cabem argumentos sentimentais, Kaplan recheia seu
livro com dados factuais, citando entre outras coisas o microchip e a pílula
anticoncepcional, cujas pesquisas começaram justamente naquele ano. Quem
discutiria que o anticoncepcional permitiu às mulheres se libertarem da prisão
da fecundação, que comprometia seus planos profissionais? Quanto aos
microchips, não são eles o sangue das novas tecnologias que correm pelas veias
do mundo e investem decididamente rumo ao cérebro, onde se dará a luta final
entre homens e máquinas?
Kaplan cita também momentos transformadores da cultura e das artes (americanas) para justificar sua escolha pelo ano de 1959: a abertura do museu Guggenheim em Nova Iorque, o jazz inovador de Miles Davis, a liberação do filme O Amante de Lady Chaterlly (primeiro com conteúdo explicitamente sexual), decretando a vitória sobre a velha ordem conservadora.
Para preencher algumas lacunas em seu
livro e mostrar que sua teoria, definitivamente, faz sentido, menciono a seguir
mais alguns fatos relevantes do ano de 1959: a entrada dos EUA na Guerra do Vietnam; a fuga do
Dalai Dama do Tibet, após a invasão das tropas chinesas; os trabalhos de
construção de Brasília; o triunfo da revolução cubana de Fidel Castro e outros
barbudos; o lançamento de filmes clássicos como Quanto Mais Quente Melhor (com
Marylin Monroe) e La Mummia (que teve vários remakes posteriores, sendo o
último de 2017); a consagração do filme Ben-Hur com 11 oscars (fato só igualado
por Titanic, 31 anos depois); e, sobretudo, para nós brasileiros, o filme Orfeu
Negro, primeira película brasileira a ganhar um oscar, e a única em língua
portuguesa até hoje a levar a estatueta na categoria melhor filme estrangeiro.
Parece
longa a lista? No entanto, há muito mais a mencionar. No campo da cultura, por
exemplo: o sucesso dos Platters, Smoke Gets in Your Eyes e o de Celly Campelo,
Estúpido Cupido, canção fundadora do rock brasileiro, que ficou por muito tempo em primeiro lugar nas paradas do
rádio e fez nossas avós (e mães) sonharem; a consolidação do gênero rock and
roll, que deixou de ser uma extravagância para entrar definitivamente para o
stablishment músico-cultural; o início da carreira dos Beatles, ainda em
Liverpool; o neoconcretista brasileiro, com Ferreira Gullar.
Em
1959, Maysa se tornou a primeira artista brasileira a se apresentar na TV
japonesa, surfando na onda da nascente bossa nova. A propósito, foi ao vê-la
cantando na TV (brasileira) que o bardo Manuel Bandeira escreveu o poema Maísa,
publicado em sua coluna no Jornal do Brasil, no ano seguinte. Algumas
passagens: “Maísa me comove me
sacode me buleversa me hipnotiza”, “Os olhos de Maísa são dois não sei
quê dois não sei como diga dois Oceanos Não-Pacíficos”, “A boca de Maísa
escanteia e os olhos de Maísa ficam sérios meu Deus como os olhos de Maísa
podem ser sérios e como a boca de Maísa pode ser amarga!”
E
não podemos esquecer Dolores Duran. A cantora e compositora gravou em 1959 sua
canção “Noite do Meu Bem”, que se consagrou como um dos grandes clássicos da
MPB, com seu refrão de incomparável beleza: “Quero a alegria de um barco
voltando / Quero a ternura de mãos se encontrando / Para enfeitar a noite do
meu bem”. Um mês depois desse registro fonográfico histórico, ela veio a
falecer de insuficiência cardíaca, com tenros vinte e nove anos de idade.
Foi
em 1959 que a Volkswagen começou a produzir no Brasil o automóvel mais popular
de nossa história e um dos mais vendidos em todo o mundo: o fusca. Um carro que
estrelou filmes e aparece na capa de Abbey Road, último disco dos Beatles. Diz
a lorota que foi inconformado com essa coincidência que John Lennon fez sua
bombástica declaração: “Ainda seremos mais populares do que o fusca”.
Você
poderá argumentar, com razão, que o progresso é um processo incessante, que
qualquer época é uma passagem entre um antes e um depois, que a escolha de um
determinado evento é pessoal e arbitrária e que atribuir a um ano o mérito de
revoluções que se concretizaram ao longo de décadas é uma simplificação
metodológica. Ainda assim, resta um argumento inabalável, capaz de comprovar a
alta estirpe do ano de 1959 no curso da história, de forma inquestionável e
definitiva: foi o ano do meu nascimento!
©
Abrão Brito Lacerda
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