O
Dr. João é o optometrista mais conhecido da cidade. Fazia parte dos assim chamados
rolhas de poço ou botijões de gás, gente que cresce tanto para os lados que
tanto faz vê-las em pé ou deitadas.
De
um natural bem humorado, o Dr. João inspirava cuidado quando circulava pelo
consultório, bufando para erguer os cento e oitenta quilos e movê-los entre bureau
e o refratômetro. Sentado do outro lado da mesa, o cliente tinha medo de que
ele tivesse um enfarte durante a consulta, e manifestava alternadamente simpatia
ou dúvida, como se a obesidade afetasse suas habilidades profissionais.
É
claro que não, ninguém é melhor ou pior por ser gordo ou magro, cada biotipo
tem sua quota de sacrifício, os delgados são muito procurados para se fazer
linguiça e os rechonchudos têm que enfrentar os assentos dos aviões.
Bromas
à parte, o Dr. João é um ótimo profissional. Despacha seis ou sete clientes por
hora, nem o Google Doctor faria melhor. E a grande novidade é que agora ele
exibe um versão 2.0, repaginada, um verdadeiro upgrade. Um Dr. João magro,
quase atlético, uma melancia cortada pela metade, tão diferente que é preciso
confirmar se se trata da mesma pessoa. O rosto é como se um melão tivesse sido
substituído por um pepino.
-
O senhor é realmente o Dr. João ou uma fake news?
-
Mudei muito, não é, tive que fazer cirurgia.
Associamos
o sobrepeso à glutonice ou à preguiça, mas ninguém é apelidado de isca de hipopótamo
por querer. A revolução estética do Dr. João demonstra que se pode superar uma
condição adversa através do empenho.
-
Uma antiga cliente voltou ontem para uma consulta. Ela duvidou que fosse eu
mesmo, só acreditou quando eu lhe mostrei a prova.
A
prova é a foto que decora a mesa de trabalho do Dr. João. O fato de não ter se apressado em trocá-la revela seu estágio de transição
entre o gordo e o magro, como se uma transformação psicológica estivesse se
operando na esteira da transformação física. Ele a gira em minha direção,
repetindo um gesto que deve ter utilizado muito nos últimos tempos, enquanto
narra sua conversa com a cliente incrédula:
-
Antes o senhor parecia ser mais moreno.
-
A senhora deve ter se enganado, eu era bem mais gordinho.
-
É verdade, mas essa é uma coisa que a gente não pode dizer.
Aproveitei que o Dr. João está de ótimo humor e aquela era a última consulta do dia e resolvi prolongar a brincadeira:
-
O senhor trocou também de esposa?
-
De forma alguma. Ela aguentou meu peso por muito tempo, chegou a hora de ser
recompensada.
Um
homem fiel.
©
Abrão Brito Lacerda
31 07 20
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