(Imagem: Vida de Turista) |
Saí
par ver o desfile de 7 de Setembro, afinal, o centro da cidade fica pertinho
daqui e o som dos tambores chega a meus ouvidos como uma música de fundo à hora
do café dominical. Trata-se de uma caminhada de cinco minutos, a rua está
praticamente livre, não há multidões, poucos veículos, dá para ouvir
passarinhos, gatos, cachorros e galinhas ao longo do caminho. O desfile é
modesto e discreto, nem de longe lembra as paradas de antigamente, aquelas que
os pais de vocês contam, ou seja, as pessoas da minha idade, e mostram nas
antigas fotos em papel: a mamãe desfilando de bailarina, o papai tocando bumbo,
o tio trajado de imigrante alemão ou japonês. A única animação evidente é a do
narrador, colocando sobre o palanque onde se reúnem certamente o prefeito e
mais meia dúzia de autoridades, além de um grupo de senhoras que participam do
cortejo vestidas de fantasias a carnaval e dançando ao som de música idem. Logo
atrás delas, o contraste. Fechando o desfile, sem pompa e sem cerimônia, o cortejo
dos aposentados do serviço público municipal, rigorosamente de negro, atrás de
um tambor que toca em ritmo fúnebre, devidamente replicado por palmas e outros
toques de percussão improvisados. Eles carregam cartazes com mensagens fortes,
nas quais denuncia o descaso do senhor prefeito municipal, que os assiste
passar de cima do palanque sem esboçar reação.
Como
estou na mesma idade que o grupo de senhoras animadas, imagino que elas sentem
saudades dos desfiles de 7 de setembro de nossa época. Eram o maior evento do
calendário escolar, as escolas se preparavam durante meses, as famílias pobres
iam além dos que seus meios permitiam para vestir adequadamente os filhos, que
eram uma craia de dez, onze, doze, não os dois ou o filho único de hoje. Havia
a ditadura militar, mas a gente pouco sabia, havia um pouco da santa
ignorância, ninguém tinha conhecimento do que se passava no Rio ou em Brasília
e, portanto, podia se dar ao luxo de ser feliz e ainda portar um pouco do orgulho
de ser brasileiro. Vocês podem achar que isso não vale nada, mas o certo é que
esse sentimento desapareceu e foi substituído pela vergonha.
Não
poderia esperar mais dessa manhã de vento frio que sopra sobre o território
nacional e traz consigo o spleen de uma pátria mãe despedaçada, batida por seus
amantes infiéis e abandonada pelos próprios filhos, que, neste exato momento,
preparam o churrasco com que vão comemorar mais esse feriado nacional. Além
disso, teve o incêndio do Museu Nacional, que pôs a nu esse sentimento de
vergonha a que eu me referia, tal qual, há muitos anos atrás, o roubo e
posterior derretimento da Taça Jules Rimet (que o Brasil ganhou na copa de 70)
e a derrota de 7 a 1 para a Alemanha na copa do mundo de 2014. Esse sentimento
de sermos os últimos na fila, uma gente chinfrim em uma terra atraiçoada. Não
que os eventos sejam da mesma natureza, mas por serem igualmente simbólicos.
Infelizmente, com a destruição de quase todo o acervo do Museu Nacional
perdemos parte de nossa própria história como se tivéssemos tido um dos membros
amputados. Teremos que aprender a viver como aleijados, ou então aspirar a um
futuro em outro museu, quem sabe uma Vênus de Milos tropical, sem braços e sem
mãos, mas com um belo traseiro reluzente à mostra, para alegria de milhões de
turistas que virão até nós tirar uma selfie.
Daí
essa mistura contraditória de apatia e perplexidade que se pode ler nos rostos
e até mesmo no canto desafinado do galo da minha rua. Caminhando, protestando e
desafinando a canção ou confortavelmente instalados ao redor da mesa de churrasco,
os brazucas estão fadados a sobreviverem a mais esta efeméride. Assim como
sobreviverá o candidato esfaqueado na noite de ontem durante um evento de sua
turbulenta campanha à presidência desta nação(?). Seus seguidores agora poderão
proclamá-lo Deus, enquanto seus adversários já o consagraram como Diabo. O
certo é que, como diz o ditado popular, quem semeia vento, colhe tempestade. Defensor
da repressão, da ditadura militar, da pena de morte e outras práticas violentas,
afeito às palavras e aos gestos truculentos que bem caracterizam os ditadores
em gestação, Jair Bolsonaro provou do próprio veneno. Ainda que o ato não se
justifique em si, ele não pode ser visto fora desse contexto de conflitos
sociais deflagrados, no centro do qual se colocou a própria vítima. Do ponto de vista da lei fundamental de causa
e efeito que governa a vida, não poderia haver demonstração mais eloquente.
São
esses argumentos baseados na falsa ideia de que o bem e o mal ou de que eu e o outro
constituem entidades excludentes que levam à perdição da humanidade. É uma forma de pensar muito em voga nestes
tempos de crise, por seu simplismo e, logo, sua ampla aceitabilidade em meio
aos estúpidos e ignorantes. Se o mal é o outro, tenho que eliminá-lo,
esquecendo-me que, do ponto de vista do outro, é justamente o contrário que
acontece. O diferente torna-se apenas uma forma de fuga, sobre o qual projeto
meus próprios estados inferiores e destrutivos. Esta é a mãe dos preconceitos e
dos conflitos e eleita a madrasta desse futuro incerto que se projeta diante dessa
pátria esquecida e abandonada.
Sabemos
que não haverá culpados pela destruição do museu, nem mesmos os responsáveis
por ele serão admoestados. Isso porque eles estão distribuídos na malha dessa
imensa rede burocrática do estado que nos condena ao atraso enquanto nos suga
com um vampiro sinistro. No entanto, se porventura algum vigia distraído tiver cometido
um ato falho em seu turno na noite do incêndio, não será surpresa se este for
condenado ao açoite no pelourinho da hipocrisia nacional. Isso pode dar
arrepios, mas pense no que nos aguarda enquanto descemos neste caminhão sem
freio ladeira a baixo – e nenhum assento ejetor para nos salvar na hora H.
©
Abrão Brito Lacerda
07 09 18
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