“Zebu morreu, ele se fudeu, cogumelo é meu!”
Ventania
De
tempos em tempos, é preciso pingar colírio alucinógeno, usar lentes
caleidoscópicas ou tomar cachaça no gargalo. Depois, fugir pras montanhas, quem
sabe recuperar um pouco do tribalismo primitivo inerente à espécie. Tem festa
no interior, tem lua cheia. Tem bandinhas tocando na frente da igreja desde o
meio da tarde. E, quando a noite cai, promissora e fria, tem carreata da santa,
sem andor, mas em cima de uma caminhonete. E tem salvas de fogos!
A fogueira é acesa no meio do largo para aquecer
o coração de crentes e pagãos, citadinos & locais. Barraquinhas de comidas
e bebidas, um palco, estrategicamente montado ao lado da igreja, compondo a aliança
indissolúvel entre o sacro e o profano. O
uniforme branco do congado brilha à luz do fogo, tambores secos ressoam pelo largo, pelas casas
rasas, bate na serra, espalha-se. O cortejo entra na igreja, atrás da
porta-estandarte, os tambores se calam, o padre inicia a missa. Tragam o
cachimbo da paz!
O
leilão é o tradicional pregão de padroeiro: frango assado (sempre o primeiro
item a ser leiloado – esse saiu por 50 reais!), panos bordados, conjunto de
cestos artesanais, um leitão à pururuca, uma xilogravura (arrematada por
incríveis 400 reais! – desse jeito a santa vai ficar rica!), um bezerro pra
fechar os arremates. Dentro de alguns instantes, o palco se iluminará e bandas
bastardas, muito barulhentas, cortarão o santo sossego. Não se falará mais da santa,
que, no entanto, repousa tranquilamente em seu nicho, a poucos metros do futuro
pandemônio.
Oito
da noite, crianças dão cambalhotas no gramado, enquanto seus pais vagam de gole
em gole, cachorros muito espertos reivindicam sua parte no humano banquete, com
manhas que mais parecem de gente: esse balança o rabo e mostra a língua
salivar; aquele faz o tipo humilde, abaixa as orelhas e se deita em frente aos
comensais; aquele acolá prefere os latidos e rosnados fake – até que um pedaço
de gordura indigesta seja lançado em sua direção e ele o dispute com os outros
cães.
Dança
das espadas, dança dos bastões, sapateado, guizos, batuques e fanfarras, discursos,
obrigado senhor prefeito, o frio recrudesce, luzes no palco, vinho, cachaça,
catuaba selvagem, cachimbo da paz, a santa dormindo em seu nicho, crianças brincando
ao redor da fogueira enquanto seus pais matam a fome, é hora do show! Não mais ao rés-do-chão, sobre a relva que
iguala os humanos, mas sim sobre o palco eletrificado, suspenso ao mesmo nível
que o altar. O som ressoa na noite oca.
Uma fina chuva começa a cair, mais cachaça, catuaba selvagem, vinho,
churrasquinhos e canjiquinha, crianças, cães, bêbados, cachimbo da paz, cogumelos
azuis.
Los
Chapados carregam o nome do lugar e da santa. Um sacrilégio, não fosse essa
união secular entre o sagrado e o profano a razão da existência de muitas
tradições. Los Chapados provaram dos “louco, louco, louco melo / Louco, louco,
cogumelo / Cogumelos azuis”, uma espécie rara de fungis que nasce da bosta de
zebu radioativo ao longo de nossas BRs.
Fica explicado o barato de tantos malucos belezas pelo Brasil a fora,
como Ventania - já ouviu falar? É um trovador riponga de São Tomé das Letras, de
biografia curta e letras fosforescentes. Abaixo o colírio alucinógeno e as
lentes caleidoscópicas. Sant’Ana há de abençoar do alto do seu nicho a cor mais
quente do inverno!
Uma
hora da manhã, crianças saltam fogueira, enquanto seus pais andam de quatro
debaixo de alguma mesa. A chuva para, o frio aumenta, as chamas ardem, dança
João com Patrícia, Maria com Zezé e todas as mulheres que não conseguiram
encontrar um namorado dançam sozinhas. No palco, aproveitando a rapa desse fim
de festa, Alvim & A Bonitinha desafinam ao som do breganejo, da sofrência,
do axé e do rala-rala. É um desfile interminável de amantes traídos, de dores
de cotovelo, de boates azuis, de desejos frustrados, de noites em claro (Alvim
é um picareta, mas essa bonitinha aí até que rebola bem). Valei-nos todos os santos,
tragam mais conhaque, licor, cachaça, catuaba selvagem, zebus radioativos, Los
Chapados, Ventania, cachimbo da paz. Chá de cogumelo azuis!
*
(Para conhecer a canção Cogumelos Azuis com Ventania, cheque o link: https://www.youtube.com/watch?v=dKfH5p49oBk)
©
Abrão Brito Lacerda
01 08 17
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