(Charge de Iotti, jornal Zero Hora) |
Decidi
dar vazão a minhas convicções democráticas ao vivo e em cores e frequentar
todas as pessoas, independentemente do partido político ou religioso. Acho que
é perfeitamente possível tolerar os amigos, os parentes, os vizinhos, os
conhecidos virtuais e os amigos dos amigos e viver em paz com a própria
consciência. Não há nada de mais em ouvir sertanejo escrachado em um
aniversário de manhã, passar a tarde assistindo a velhos clips de Toquinho e
Vinícius, tomando whisky com guaraná em casa de amigos e ainda aceitar o
convite do vizinho para um churrasco na sexta à noite, com o cardápio: picanha e hits gospel. Sem deixar
de se entrever com representantes da velha guarda no fim de semana, seja ela a
heavy metal ou a jazzística.
O
ideal é adotar um tom bem natural. Se o assunto for política, não se recusar a assistir
aos velhos discursos do Lula, daqueles dos tempos do sindicato dos metalúrgicos
de São Bernardo do Campo. Acompanhado de Joan Baez, Bob Dylan e os famosos clips
de Toquinho & Vinícius, é um menu perfeitamente tragável. Da última vez,
sugeri Diana Pequeno e ficaram de analisar. Acho que é porque não têm mais
vinis da baianinha e lá só tocam vinis. Quero
ouvir de novo num pick-up à moda antiga “Blowing in the Wind” e “Voarás”, em dueto
com Paulinho Pedra Azul.
As
conversas paralelas inevitáveis nunca devem ser tomadas a peito: houve um golpe
em 2016, foi com o golpe de 1964, viva 1979 e o Sindicato dos Metalúrgicos do
ABC, abaixo 2017 e o presidente Frankstein usurpador. Repito: “Viva 1979!” Toda vez que volto a essa
época, ganho meus vinte anos de volta, ainda que seja por apenas algumas horas.
O
churrasco do vizinho foi uma maravilha. Cada frase terminava em “com ajuda do
senhor” ou “foco na fé”. Você mudou de emprego, curou da sinusite ou chegou são
e salvo de uma viagem, então foi “com a ajuda do senhor”. A segunda fórmula
recorrente – “foco na fé” – me surpreendeu muito no início, mas agora vejo que
não passa da expansão inevitável da globalização. As igrejas não são geridas
como um negócio qualquer? Então a prática da fé também tem que adotar a frase
mágica que é “manter o foco”, tal qual um trabalhador de escritório, um CEO ou um
palestrante. Hoje são milhões de pessoas focadas na fé pelo país, merecem ser
ouvidas.
Além
disso, a música gospel perdeu sua monotonia típica, pelo menos no campo da
melodia. Certo, todas as letras glorificam ao senhor e a maioria das canções
incorporam o jingle “amém, Jesus” ou “glória a Deus”, mas faz parte, como disse
o meu vizinho churrasqueiro. Já os ritmos, mudaram e se adaptaram aos novos
tempos. Tem gospel Psychobilly (gospel de terror, é isso aí!), sertanejo e até
punk. Com roupas rasgadas e botinas, mais inscrições bíblicas nas jaquetas de
couro ao lado de suásticas e caveiras. Só não gosto do gospel funk, axé e samba
canção, porque me cansei. Todos estes ritmos rolaram democraticamente no
churrasco “chez le voisin” (na casa do vizinho) e foram acompanhados de
apaixonadas defesa de um personagem que vocês hão de vaiar: o Bolsonaro.
Não
eu. Não estou aqui para vaiar vizinho que oferece churrasco de picanha e queijo
coalho comprado diretamente da fazenda. Perguntaram o que eu achava do
Bolsonaro. Eu me fiz de bobo. Devo ter exagerado, pois ao ver a minha cara, o
vizinho começou a discursar sobre a importância de “combater a corrupção, mandar
(mais) bandidos para as prisões, combater – com pena de morte se preciso for –
o tráfico e o uso de drogas, defender a família e os costumes, mas não os
direitos das mulheres, em nome da bíblia, glória a Deus!”. Aproveitei a deixa
da bíblia. Tem aquele livro, o Eclesiástico, com suas elegias à sabedoria, que eu
gosto muito. Dessa vez foi meu vizinho quem fez cara de bobo. Fingi que tinha
recebido uma ligação urgente, agradeci pela gentileza do convite, prometi
retribuir um dia e me mandei.
Ao
chegar em casa, vi que o livro do Eclesiástico não faz parte da bíblia dos
evangélicos. Foi a primeira vez que abri uma bíblia em trinta anos, o que
significa que não voltarei mais a fazê-lo até morrer.
A
turma da maturidade está cansada de experimentalismos e gostaria muuuito de
voltar às velhas fórmulas que funcionam para a República Federativa do Brasil.
Nós somos uma república presidencialista, certo? Nossa democracia é a do
consenso, ou seja, elegem-se legisladores de vinte partidos diferentes e depois
faz-se o rateio da pizza: o partido do presidente leva a metade ou mais e
distribui o resto em porções desiguais pelos aliados, consoante seu poder de
votos ou apoio. Assim, um ministério é negociado tal qual o chuchu em uma feira
– o que querem? É o capitalismo!
A
esquerda fracassou, concordo, tá na hora da direita tomar conta do pedaço de
novo, não concordo. Nada de aventureiros, Temer está de bom tamanho para nossa
mediocridade. Janot, PF, STF, TSE, PGN e PIS-PASEP não têm nada que meter o
bedelho na política, deixa o troca a troca continuar, cada um sabe o cu que tem.
É
demais para um estômago sensível, mas não vou quebrar minha determinação de levar
na boa com todos, em nome da democracia. Peço pra rolar aquele disco antigo do
Iron Maiden: “Run to the hills / run for your liiife” (“Corra pras colinas /
corra pra se saaalvar”). Ainda bem que esse foi o fim de semana do heavy-metal.
Já estou me preparando pra encarar o núcleo duro do jazz na próxima.
©
Abrão Brito Lacerda
14 07 17
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