Inspirado
por um artigo do The New York Times*, resolvi fazer um retrato diferente da minha
mãe, buscando recuperar um pouco do seu tempo de juventude, tal qual o artífice
que restaura uma antiga fotografia em preto e branco que esmaeceu em contato
com as intempéries. Será também a oportunidade de prestar-lhe mais uma homenagem,
desta vez não como a Dona Celsa tão cara à memória daquelas que tiveram a
oportunidade de conhecê-la, uma guerreira que atravessou o século XX até chegar
ao início deste século XXI, quando faleceu aos 92 anos de idade, mas como a
pessoa em si, para além do mito da mãe, avô e bisavô, em concomitância com o espírito
de sua época.
O ponto de partida é esta foto acima, único registro que ficou de sua época de
solteira. É uma foto muito bonita, como podem ver, com vários detalhes
significativos, em que pese a simplicidade do cenário e a casualidade da pose. No
verso, está cuidadosamente registrada, primeiramente a lápis e depois
sobreposta a tinta como um registro a não se perder, a data de “11 de Agosto de
1940 com 18 Annos de idade”.
A jovem da foto, que porventura se preparou apressadamente para tal, está tranquila,
nenhuma ponta de preocupação ou angústia pode-se ler em seu rosto. Seu olhar é confiante
e ligeiramente melancólico, a comissura dos lábios esboça um sorriso misterioso.
Sua postura é firme, seu corpo pequeno mas robusto equilibra-se sobre sapatos
de saltos baixos, quiçá um pouco apertados. Seus cabelos não são compridos e
estão atados atrás de maneira muito prática. O recato das mangas do vestido e a
barra abaixo dos joelhos lembram-nos que este era o costume de antes da guerra,
ainda mais em um Brasil rural, muito distante dos grandes centros. Dois únicos toques
de coquetterie se destacam: a trama do bordado da gola e o broche, o qual constituía
possivelmente o único item reluzente do seu look, uma vez que ela não leva
brincos, colares ou anéis.
Ela tinha acabado de completar 18 anos. Sua vida até então não tinha sido nada
fácil e podia em muitos aspectos ser comparada à de uma gata borralheira. Ao
nascer, em 6 de agosto de 1918, em um sítio de Córrego dos Trabalhos, distrito
de Ribeirão do salto, município de Itarantim, estado da Bahia, parecia estar
destinada à doçura de uma vida embalada pelas atenções de uma mãe carinhosa e
um pai bondoso. No entanto, com apenas sete anos de idade, ficou órfã de
mãe. Buscando uma companheira que o ajudasse na lida com os filhos, o avô Elias
se casou pela segunda vez, e este foi o início dos infortúnios de Nenen, a
caçula, uma vez que a madrasta se revelou uma megera de espírito de porco,
autoritária e ciumenta. Como no conto dos irmãos Grimm, a bruxa tinha duas
filhas feias e preguiçosas, que não tardaram a ficar com ciúmes da enteada e a
tramar contra ela. Sob o olhar complacente do avô, quem sabe um homem
apaixonado por uma mulher mais jovem, Nenen foi tratada com desprezo e obrigada
a assumir o serviço da casa desde muito cedo.
No sítio do avô Elias, produzia-se rapadura e açúcar mascavo, além de outros
gêneros de primeira necessidade, como era típico da economia de subsistência
das fazendas. Pelo que minha mãe nos contava, essas atividades faziam parte da
tradição da família, o que é coerente com a história do Brasil, uma vez que
muitos Britos se instalaram no Nordeste durante o Ciclo do Açúcar (século XVI) e
depois se espalharam pelo resto da colônia. Consta dos registros que alguns
Britos ascenderam socialmente em Portugal e ostentaram inclusive títulos
nobiliárquicos, mas não foi essa a linhagem que deu origem a minha família.
De
qualquer modo, o sobrenome é carregado de significado. Brito vem do latim
“brittus”, que designa “pedra” ou “britta” e simboliza durabilidade, força e
resistência. Tomando essas características de empréstimo, poderíamos dizer que
a jovem da foto acima olha confiante para o futuro porque possui intrinsecamente
tais atributos, os quais a permitirão enfrentar as provações de uma larga
existência, e serão igualmente transmitidos à sua descendência.
Em
contraponto à árdua lida do campo, o dia a dia no Sítio dos Trabalhos era
pontuado pelas festas do calendário católico, além dos bailes de sanfona
típicos do interior do Nordeste. Foi crescendo nesse ambiente que Nenen
descobriu o seu maior prazer na vida: dançar. Não será esse o segredo oculto
por trás do seu sorriso jovial à la Mona Lisa? Se dermos asas à imaginação,
poderemos perceber até mesmo um movimento que se inicia na perna esquerda e se
estende pelo quadril e a cintura - como um sutil convite à dança.
Além dos bailes, tinha o rádio, o grande veículo de comunicação da época.
Circunscrita a um mundo fechado em si mesmo, uma espécie de pequeno feudo, seus
sonhos de menina-moça eram embalados pelas modinhas que chegavam através das
ondas flutuantes do rádio. Muitas dessas marchinhas nunca saíram de sua
memória, como: “Oh jardineira por que estás tão triste, / mas o que foi que lhe
aconteceu? / Foi a camélia que caiu do galho, / deu dois suspiros, / e depois
morreu.” Ela interpretava esta canção tradicional com um “r” vibrante - Oh, jaRRdineira...
- e uma voz suave de mezzosoprano.
Um ano depois de tirada esta foto, ela conheceu meu pai, que era filho de um
fazendeiro do município vizinho de Mainique e pernoitou no sítio do avô Elias durante
um transporte de gado. Mas essa é outra história, é a que dá início ao mito da
mãe, e não pode ser contada aqui.
___________
(*https://www.nytimes.com/2017/05/10/opinion/our-mothers-as-we-never-saw-them.html)
©
Abrão Brito Lacerda
15 06 17
12 08 18
Que linda história tio!! Eu não a conhecia.Emocionante!!Saudades da minha cozinha.
ResponderExcluirVozinha!
ExcluirSalut, Betany. Obrigado por seu comentário. Fico feliz que tenha gostado. Volte sempre.
ExcluirOlá, Tio Abrão!
ResponderExcluirMais uma vez me encontro emocionado ao término de mais uma leitura. Principalmente, no que se diz respeito à minha saudosa "Biza". Só lhe agradeço por transmitir em suas belas palavras, histórias que poderiam ter se perdido com o tempo, e que para os mais jovens como eu, não sabia que existia. Confesso que fiquei curioso para saber o que aconteceu depois da pernoite de meu bisavô. Como um sobrinho/fã/leitor...Peço que não me deixe apenas na curiosidade!!! Até breve!! Abraço a todos
Obrigado pelo belo comentário, Jefferson. Vou escrevendo de acordo com a inspiração. Sobre sua avó, certamente ainda escreverei muito. Tudo de bom, volte sempre.
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