Cândido Pierrot atravessou o deserto
em lombo de camelo no intuito de reencontrar o grande amigo de infância, que
tinha resolvido trocar o sertão pela Arábia. A marcha dura do dromedário, o sol
implacável, a desconfiança dos beduínos, nada o desencorajou. Após dias de
viagem, chegou a um oásis onde brotava água fresca e as tâmaras frutificavam em
abundância. Mas os guardas da tribo, ao vê-lo sem túnica e turbante, tomaram-no
por um espião, prenderam-no e levaram-no ao chefe.
-
Que fazes aqui, galego? Espionando nossas fêmeas? – indagou o xeique, batendo
com o cajado de osso de camelo no chão.
Pierrot
ergueu os olhos discretamente. O xeique estava sentado em um trono de madeira
coberto com pelo de camelo. “Tofu”, pensou. “Se não encontrar um álibi
convincente, serei servido no repasto da noite. Ou talvez me amarrem no rabo de
um camelo bêbado e o soltem pelo deserto. Se tiver escolha, vou preferir ser
servido no jantar – com bastante pimenta. De qualquer modo, vou manter os olhos
baixos, para que ele não me tome por um insolente.”
-
O que buscas nas terras de Alá, forasteiro de pele pálida? – repetiu a pergunta
o xeique, batendo mais forte com o cajado.
Pierrot continuou mudo – como
responder, se nada entendia do idioma badawi?
-
Cortem a língua desse infiel! – ordenou o xeique.
Pierrot
sentiu o sangue gelar em suas veias. Seu único recurso foi gritar:
-
Se avexem, barbudos, me soltem!
O
xeique ficou paralisado. Mirou o estrangeiro por algum tempo, fez um gesto
para que os guardas o soltassem, ergueu-se e caminhou até ele, falando
discretamente:
- Ó xente! Você fala português?
Pierrot
sussurrou, quase um suspiro:
-
S-sim, acabei de chegar na caravana da “hora do calango tostado” (por volta das
15h00). S-sou de Sobral, no Ceará.
- Arriégua! E como veio parar aqui?
-
Estou procurando um amigo que se mudou para cá há muitos anos.
-
Ele também é de Sobral?
-
Com certeza. É por isso que estou aqui. Tenho uma carta para ele.
-
Carta? Aqui no deserto só usamos Whatsapp e wi-fi.
-
Foi a namorada dele quem escreveu antes de ele se mudar para cá, mas não teve
tempo de entregar.
O
xeique ergueu o cajado e deu nova ordem:
-
Tragam água para este homem! Deem-lhe banho, sopa de leite de camela com
lentilhas e roupas limpas! Levem-no depois para uma tenda onde descansar!
Ao
cair da noite, estando Pierrot bem instalado numa tenda de couro de camelo, o xeique
apareceu, acompanhado de uma mulher e duas crianças. Pierrot inclinou-se em
respeito.
-
Você está bem melhor – disse o xeique, demonstrando bom humor. – Quando chegou,
estava fedendo feito um bode do Cariri.
-
Obrigado por me salvar, isto é, por não me deixarem cortar a língua. Você fala
português com sotaque nordestino...
-
É que também sou de Sobral no Ceará. Cheguei aqui há vinte anos e comecei a
negociar com camelos, me dei muito bem, me casei com uma berbere e agora sou o
chefe do Oásis de Jamil Arratab (Camelo Molhado, em árabe). Meu nome é Gervásio
Comodoro.
-
Então você é...
-
O amigo que você veio procurar!
Ainda
não sabiam como se portar um com o outro, se formalmente ou à moda antiga.
-
Onde está a carta?
-
Aqui!
O
xeique abriu a carta, ainda perfeitamente selada, leu-a em silêncio: “Gervásio,
agora que você está prestes a partir, tenho que lhe confessar que amo o seu
melhor amigo, Cândido Pierrot. Peço perdão por tê-lo traído.”
-
E a Marcela?
-
Ela agora é minha esposa.
Nesse
momento, a mulher e as crianças, que tinham ficado do lado de fora, entraram na
tenda.
Os
dois amigos se levantaram e trocaram um longo abraço.
©
Abrão Brito Lacerda
26 10 16
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