Não
se trata de uma nova dupla caipira, mas sim dos próprios, os inomináveis, harmonicamente
divergentes e radicalmente concordes, deslocados deste mundo como peixes na
areia do deserto.
No café da manhã, e mesmo
antes:
-
Filho, café!
-
Já vou!
-
Por que ligou esse tablet? Vem logo!
Cinco
minutos depois:
-
Filho, já falei dez vezes! Vem tomar café!
-
Dois minutinhos...
-
Agora!
E
o vô:
-
Seu Leimar, o café está pronto!
-
Hã?!...
-
Café da manhã!
-
Tô no banheiro lavando as mãos.
-
Isso aí é o vaso!
-
Hã?!...
Cinco
minutos depois:
-
Seu Leimar, vem tomar café!
-
Tô esperando.
-
Na garagem?
-
Hã?!...
Por
um feliz acaso, avô, neto e pais se encontram à mesa:
-
“Põi” (= pai), sabia que zerei o Don’t Starve?
-
Zerou?
-
Zerei. Tinha mais de cinco mil pontos e depois detonei o Darkwing, o maior apelão
de Iceland! - “Iceland” é “terra do gelo”, não é “põi”?
-
Isso mesmo!
O
avô admira as broinhas com reverência.
-
Estão deliciosas! Experimente uma!
O
avô é obediente, mas tem uma pergunta recorrente:
-
Toninho ainda não levantou?
-
Toninho está em Belo Horizonte, pai. Aqui é Timóteo.
-
Hã?!...
Avôs
e netos são igualmente espaçosos, uns por que são velhos, outros porque são jovens
demais. Depois que o filho nasce e cresce, novas regras são impostas à casa e o
pai é convocado a dar exemplo de sacrifício:
-
O menino está com medo de fantasmas e vai dormir na sua cama!
-
Mas ele tá grande o suficiente pra dormir sozinho!
-
Claro! Você vai dormir na cama dele!
As
crianças, como se sabe, são difíceis na hora de comer, para desespero das mães,
que imaginam o tempo todo que sua prole está passando fome – antes de começar a
criticá-la por estar ficando gorda com a comida que ela lhe empurra sem parar.
-
Não quero bife de fígado e salada, mãe, quero miojo.
Ataque
de nervos:
-
Vai comer tudinho ou ficará um mês sem televisão!!!
-
Pode tablet?
-
Sem tablet, sem video game, sem nada!
-
Quero miojo com atum!
-
Ahhhh!!!...
O
pai compreende a necessidade de mais um sacrifício:
-
Deixa, eu como o bife dele...
Assim,
quando o avô chega, não há surpresa. Logo vem a mulher com o recado:
-
O pai vai dormir na sua cama. Ele precisa de um colchão macio e firme.
-
Todos os nossos colchões são assim.
-
Não me venha com seu egoísmo! O pai só vai ficar uma semana!
Os
velhinhos passam muito tempo diante da televisão, dizem as estatísticas. Comem
e dormem, literalmente. Os cuidadores acham que os velhinhos não dão conta de
mais nada e os deixam engordando no sofá. Deveriam permiti-los arriscar-se
mais, ainda que quebrassem algumas costelas.
Às três da tarde, seu
Leimar está roncando de boca aberta diante da tv, sintonizada em um filme
qualquer. É despertado por uma voz que
atua como seu relógio biológico:
- Chazinho, pai?
Seu Leimar aceita, sempre
de bom grado. No meio do chá, para, com uma pergunta recorrente:
- Mas Toninho está
demorando, hein?
- Toninho está em Belo
Horizonte, pai. Aqui é Timóteo!
- Hã?!...
Os dedos do menino se
movem com rapidez impressionante sobre o console do game e suas perguntas
brotam de modo igualmente surpreendente:
- “Põi”, a extinção dos
dinossauros foi na Era Mesozóica?
- Não sei, vou ter que “gugar”...
- Meu livro de ciências
diz que foi na Era Mesozóica.
- Então foi na “Era Mesozóica”.
- O Espinossauro foi o
mais poderoso dos dinossauros, sabia?
- Não foi o Tiranossauro rex?
- Que nada! O Espinossauro
era muito maior, tinha dentes muito afiados e podia nadar como um pato.
E virando-se para o avô:
- Vô, sabia que as
primeiras flores surgiram no período Cretáceo?
- Toninho tá no quarto? Bem
que eu vi que ele tava demorando...
- Toninho está em Belo
Horizonte, seu Leimar. O senhor vai vê-lo na semana que vem.
- Hã?!...
Vô & Netinho adoram
os comandos que eles passam o dia inteiro a subverter. É uma necessidade
endêmica, parecem estar programados para reagir a um agente externo – a voz da
mãe ou da filha, por exemplo:
- Filho, já pra cama!
- Dois minutinhos...
- Agora!
O avô admira o copo de
cerveja vazio – Ah, não, ele já ferrou no sono de novo...
- Hora de dormir, pai! A
cama está pronta!
Cinco minutos depois:
- O que está procurando, seu
Leimar?
- Quem tirou minha cama
daqui?
- Isso aí é o banheiro,
seu Leimar, o quarto fica ao lado!
- Hã?!...
©
Abrão Brito
Lacerda
23 10 15
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