Fernandes é uma criança
de calças compridas. Tem rosto redondo,
olhos grandes e um sorriso sempre aberto. No Luxury Hotel, onde trabalha de
smoking e quepe preto, sua silhueta embeleza o hall, quase tanto quanto faria uma
estátua do Buda.
Sabe tratar os hóspedes com
deferência:
-
Boa tarde, madame. Posso ajudá-la com as malas?
Arrisca
até o inglês, se desconfia que o hóspede é estrangeiro:
-
Good day, gentleman. This way, please.
Ele
é o bellman, fica à disposição da recepção
para atender aos quartos, dar recados, transportar bagagens, com ou sem
carrinho, subir e descer sem parar, escada elevador, elevador escada. Enquanto
outros mostram uma simpatia protocolar, ele procura todos os dias não
desmerecer as recomendações da amiga da mãe, que o indicou para o emprego:
“Fernandes é honesto e responsável. O senhor vai ficar orgulhoso de tê-lo como empregado.”
Certo
dia ele chegou ao trabalho usando uma máscara verde, e foi aquele alvoroço. Os
colegas tentaram convencê-lo a abandonar o disfarce, mas ele retrucou:
-
Ganhei da minha tia para usar no carnaval.
Foi
preciso que o gerente usasse um hábil argumento:
- Vamos fazer o seguinte:
eu guardo em minha sala e você pega no final da jornada de trabalho. Combinado?
A
mãe morre de preocupação todo dia ao ver o Fernandes se preparar para sair. Ele
escova os dentes e toma banho ao mesmo tempo, veste as calças enquanto coloca
os sapatos- uma perna e um pé de cada vez. Depois, dobra o smoking em quatro
partes, coloca-o em um saco plástico e amarra na garupa da bicicleta. Se é dia de pagamento, ela nunca esquece de
recomendar:
-
Não pegue dinheiro, pois os vagabundos vão querer te roubar!
E
Fernando sai pedalando com energia.
Em
frente ao Bar do Vicente, os cães aguardam de orelha em pé que a bicicleta azul
vire na esquina e depois partem em seu encalço, latindo e mordendo as rodas.
Fernandes grita, os cães rosnam, como se estivessem atacando uma presa de
verdade. Daí a cinquenta metros, os animais dão meia-volta e retornam ao bar.
Como
outro dia foi o aniversário da mãe do Fernando, ele quis fazer-lhe uma
surpresa. Comprou um presente, mandou embrulhar em papel dourado e amarrou na
garupa da bike. Em seguida, foi ao supermercado, de onde saiu com duas sacolas,
que foram penduradas ao guidon. E rumou para casa, sem se preocupar com os carros,
vagabundos e cães do caminho.
Vinte minutos depois, já
estava se aproximando do Bar do Vicente, quando um pensamento o tomou de
assalto: “Os cães podem rasgar as sacolas. Além disso, a bike está mais pesada
e difícil de guiar. Ou então, o presente pode cair...
Mas
foram os vagabundos que infestam o bairro que começaram a correr atrás dele,
atraídos pelo embrulho chamativo. Fernandes se lembrou das palavras da mãe e pedalou
com o coração nas pernas. Com os moleques em sua cola, ele se aproximou do bar,
onde os cães aguardavam por sua diversão favorita.
No
entanto, para surpresa dos cínicos e indiferentes que acompanhavam a cena da
calçada, os cães não atacaram Fernando. Ao verem os moleques correndo atrás da
bicicleta, os animais ficaram enciumados e avançaram furiosamente contra eles,
distribuindo mordidas nos calcanhares, braços e traseiros. Os desocupados tiveram
que vazar por baixo de uma cerca de arame fardado para dentro do capim duro, de
folhas cortantes como navalhas.
Fernandes respirou
aliviado:
“Da
próxima fez, trago comida para os cachorros.”
©
Abrão Brito Lacerda
15 04 15
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