(Imagem: www.curiosidadesgerais.net) |
Dizem que, nos tempos de
Noé, bicho valia tanto quanto gente. Esta é uma causa justa, razão pela qual todos
deveriam ler a Bíblia. Mas Noé também foi conhecido por sua longevidade – e
dizem que naquela época os homens viviam muito, coisa de séculos. Adão teria
vivido 931 anos e Matusalém, 969. Adão teria sido o pai de todos nós, o que se
explica facilmente, tendo ele vivido tanto tempo. Matusalém ganhou uma palavra
com seu nome. A gente mesquinha vive menos de cem, o que para alguns é pouco e
para outros é muito, por incrível que pareça.
Quem vive no mundo da
Internet não imagina a chatice que era ser jovem no passado. Ainda que os avós
enalteçam as maravilhas do Jeep Willys e o óleo de fígado de bacalhau ou
Emulsão Scott (verdadeiro responsável pelo baby
boom segundo minha mãe), eu me recusaria a voltar à infância só para não
tomar esse remédio infame – mas reconheço que só estou aqui por tê-lo tomado no
passado para curar uma persistente anemia. Preferiria ressuscitar o Laboratório
Catarinense e a folhinha do sagrado coração de Jesus! - Pensando bem, as
décadas pregressas não foram tão desprovidas de graça assim. A vida se levava a
esmo, a gente desaparecia como mariposa na hora de construir casulo.
Agradeçamos à ditadura
pela adolescência movimentada que tivemos: era proibido falar mal dos
militares, mas era também proibido falar bem deles. Todos achavam que, idos os
milicos, chegariam as caravelas da civilização enfunando velas. Estávamos
fadados a um futuro brilhante, Karl Marx seria presidente e Bakunin primeiro-ministro.
A música era muito boa, as
mulheres ainda melhores, as festas, de arromba. Um pouco de sacanagem não fazia
mal a ninguém. Como o ancião da Bíblia, o Noel do século XX, dark, hilário e
imprevisível, surgiu numa simples peça de estudantes. Era o “dia da abertura”,
quando as portas do alojamento feminino seriam arreganhadas e os homens
invadiriam o prédio. Pelo menos era a profecia de um cara metido em batina e estola,
auto-proclamado deão da solenidade:
- Abram-se as portas
desse antro para que possamos adentrar!
- Vamos abrir! Vamos
abrir! – gritavam lá de dentro.
Veio em seguida o comercial
dos “absorventes vampiro – os que sugam até a morte”, depois uma versão mais do
que explícita de Balancê de Gal Costa por um bando de moças assanhadíssimas:
- Eh, Balancê! Balancê!
Quero transar com você!
Sei que seu pau fica duro,
Não adianta esconder!
O deão aspergiu a
multidão com água benta e proclamou mais de uma vez que as portas seriam
escancaradas. A turba masculina esperou pela graça de mãos espalmadas, mas nada
aconteceu. Às onze da noite, como proclamava a norma, a algazarra se encerrou e
todos tomaram o caminho de casa.
Quase uma década depois,
Noel reapareceu. E em boa hora, diga-se de passagem. Descer a escada do
auditório até o térreo não seria tarefa fácil para aqueles cabeças-ocas. Noel
levou-se pela mão e, para disfarçar a maluquice geral, fez cabra-cega no meio
do saguão, com rock rolando e tudo.
- Disseram que eu não tenho
coragem de falar b.....! Pois então, b....!, b....!.
- B....! - berrou a
multidão.
O deão de araque, mestre
da cabra-cega, vivia a cavalo entre duas épocas, segundo sua própria narrativa,
misto de ficção e realidade. Tinha feito parte das Brigadas Armadas Palmares -
a famigerada Varpalmares da época da luta armada:
- Participei do congresso
de Ibiúna, fui preso e torturado.
O congresso de Ibiúna foi
em 1969, quando a UNE já tinha sido posta na ilegalidade pela ditadura militar.
Nos tempos
pré-democracia, Noel tornou-se linha de frente da Libelu, a Liberdade e Luta
dos Trotskistas, muito em voga nesse período da pré-história. Conhecia Deus e o
mundo, tinha ido a Roma de boca, era filho pródigo de Guanhambi, na Bahia,
segundo ele próprio me contou uma cidade onde os bodes falavam:
- Barnabééé!...
Guanambi, Bahia. |
Fazer cinema era fogo
naquela época. Nada estava ao alcance de um clic.
©
Abrão Brito Lacerda
23 02 15
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