Uma cidade se conhece por
suas ruas e sua gente, pelo que se ouve e se vê e também pelo que se cheira e
se come. Por isso, quando viajamos, é importante ir além dos monumentos, buscar
encontrar as pessoas comuns, experimentar os pequenos prazeres e arriscar o
imprevisto. Bancar o transeunte, o intruso, o estranho, talvez.
Em Paris, há inúmeros
programas que nos permitem participar da vida local, fazendo o que os
parisienses fazem, desde que conscientes de que a altura do nariz é
proporcional ao status do lugar. No centro histórico, onde há mais turistas do
que nativos, quase não se nota isso, afinal, é tudo uma questão de
mercantilismo, comprar, pagar, ir-se, talvez para nunca mais. Mas, onde a
multidão raleia e as trocas interpessoais tornam-se mais evidentes, isso se
percebe claramente.
O metrô funciona bem até as
23:30, quando passa o terminus, o
último trem. Depois, salve-se quem puder e conseguir parar um dos concorridos
táxis da cidade. Se não falar francês e não conseguir explicar o destino, levará
uma patada. Se falar, levará também, mas poderá devolver na mesma medida. E se
estiver indo para uma ruazinha estreita, tão comuns na cidade antiga, o
motorista vai querer deixá-lo na avenida mais próxima para não sair do trajeto.
E lhe dará uma patada no traseiro como estímulo para a caminhada.
Naquele dia, decidi ir à Porte de Clignancourt, nos limites entre
a cidade e a banlieue, a periferia.
Tudo muito prático, basta pegar o metrô na direção certa e vinte minutos depois
chega-se ao Boulevard Périphérique, na parte nordeste da cidade. Lá existe um
tradicional mercado das pulgas, um lugar que já foi santo mas hoje não é
recomendado para as senhoras.
Ao
se aproximar da grande praça, cortada por um viaduto, dá um frio na espinha.
Isso porque o lugar virou refúgio de imigrantes e uns tipos esquisitos te
abordam à tour de rôle, oferecendo todo tipo de muamba em tabuleiros
improvisados, debaixo dos casacos, nos bolsos, nas mangas. Confesso que pensei
em fugir e só não o fiz porque apareceu um pelotão de agents de police, os policiais franceses, grandes e com ar de
poucos amigos, diante dos quais os sans
papiers ou imigrantes ilegais fugiram em debandada, vazando para as ruas
laterais ou se misturarando à população. Merci, messieurs les agents! Logo
adiante, o marché aux puces, o
mercado das pulgas.
Os produtos em exposição são reunidos dentro das lojas, do
piso até o teto, assim como do lado de fora, ao lado das portas, nos corredores,
no melhor estilo bric-à-brac. No entanto, a impressão não é de desordem e sim
de arranjos harmoniosos e agradáveis ao olhar, cromatismos e tons sobre tons, no
característico bom-gosto europeu.
“No photos”, dizia um cartaz. Como não obedeci ao aviso, fui
interpelado por um vendedor. “Desculpe, não sei inglês”, foi minha desculpa
esfarrapada. Ele fingiu acreditar. É difícil entender o que há de errado em
fotografar bichos de pelúcia, móveis, roupas, objetos de decoração, gravuras e
sabe-se lá mais o quê.
Na entrada de outra brocante, a placa de madeira em estilo
rústico com a inscrição “Bonneterie”. Nome difícil de traduzir e carregado de
humor. Bonneterie era a arte medieval de fabricar vestimentas de tricô: meias,
boinas, luvas, camisolas. No entanto, a loja não vendia nenhum desses produtos.
Sugeri à gerente que mudasse a placa para “Bonnerie”, algo como “Empório da
Bondade” ou “Lugar de coisas boas”. Ela
sorriu, ganhei a foto.
Você passa e olha, não
compra nada, mas se reeduca. O mercado das pulgas nos ensina a ver o mundo de
outra forma, a descobrir novas funções para objetos corriqueiros, assim como
funções corriqueiras para objetos inusitados. Desconfio de uma sabedoria oculta por trás desse modo
aparentemente casual de expor as mercadorias – é a política de “troubler le
regard”, de confundir o olhar do passante. Ao produzir uma desorganização
momentânea em nossos códigos internos, conferi-nos prazer, como em um jogo de
improviso.
Andando
pelos becos estreitos, com atenção máxima para não pisar em algo que poderia me
custar uma fortuna, dei com uma fachada envidraçada coberta de cartazes e
avisos e encimada por uma placa de estanho um tanto gasta pelas intempéries
onde se lia: “Chez Louisette – Bar – Restaurant”. A porta estava aberta, entrei.
A
primeira impressão que tive foi: “O que vim fazer aqui se não bebi?” E não por
acaso: o teto era forrado com papel dourado e vermelho, tão baixo que quase se
podia tocar, algumas dançarinas improvisadas dançavam sobre as mesas ao som de
uma banda, formada por acordeom, metais e percussão, mais o crooner, que
entretia os fregueses com canções ao estilo
cabaré.
Consultei
o menu, pedi o bom e honesto foie gras –
Vive la France!, acompanhado de uma demi de vinho tinto. No Café Marly, um
barzinho branché situado no segundo
andar do Museu do Louvre, teria me custado 70 euros. No Chez Louisette saiu por
22.
“En liquide”, disse-me a garçonete. A
dinheiro, pois não, perfeitamente, voilà, madame. É preciso adaptar-se aos
costumes do lugar. Uma garrafa de água mineral, por favor, a banda atacou de
“wave” de Tom Jobim, na versão de Sacha Distel. Após os aplausos, o cantor
anunciou: “Esta foi a bela canção de Sacha Distel”. Com minha franqueza baiana,
apoiada pelo bom vinho francês, fiz a correção: “Não, é de Tom Jobim.” “Ah,
temos aqui um brasileiro!” “Sim, gosto muito de bossa-nova e estou com um calo
no dedão de tanto andar.” Algumas damas passadas me olharam, fingi não ver. Depois
a banda atacou de salsa e as freguesas malucas voltaram para cima das mesas.
O
sol caía e todos de pé. Em dado momento, precisei ir ao banheiro e me dirigi ao
fundo do bar, após ter pego a chave no balcão. Enquanto me aliviava, light e
sem pressa, bateram freneticamente à porta. “É mais um querendo fazer xixi”, pensei.
Mas não era.
Ao
abrir, dei de cara com o gerente, reclamando que estava na hora de fechar,
“vite! vite! Olhei em redor: os músicos já tinham se mandado, os clientes
tinham sido despedidos, as garçonetes preparavam-se para partir com a urgência
de quem tem que pegar o último trem. E minha garrafa? Já paguei! Ganhei o
direito de engolir o resto do vinho, sob a assistência nervosa do gerente, que
confessou gostar muito do Brasil, de
Chico Buarque e de Vinícius de Moraes, que pediu que eu voltasse outro dia, que
teria muito prazer em me atender.
Fiquei
comovido, talvez por causa do vinho. Jamais tinha merecido tamanha consideração
de parte de um dono de bar. Saí dali pisando em nuvens e nem os muambeiros que
haviam retornado à praça com seus relógios falsos e seus olhares de aves de
rapina me assustaram mais. Eu estava no clima.
©
Abrão Brito
Lacerda
Vendo sua narrativa se descrevendo, também me veio a lembrança de situação parecida próximo ao Moulin Rouge. Há algumas estreitas ruas laterais onde "senhoritas" são oferecidas nas vitrinas, meio como num açougue. Isso nos anos 95, não sei agora.
ResponderExcluirBelo texto, como sempre!
Salut, Zé.
ResponderExcluirO olhar crítico insere profundidade, mas deve ter propriedade e não se exceder, penso eu. Pelo lado dos problemas, como a imigração ilegal, a Europa tem aos montes. Mas mantemos nossa admiração por eles, pela capacidade de iniciativa e inovação dos povos europeus e pelo charme de alguns lugares.