Era
uma casa localizada na Rio Grande do Norte com Contorno, perto da trincheira,
ali onde os carros mergulham para passar sob a avenida: um dos últimos prédios belle époque remanescentes na cidade,
uma incongruência quando comparado ao muro de concreto que abre a rua em “u” e
marca o predomínio da máquina sobre a poesia. Subia-se pelo lado esquerdo até
avistar os letreiros em neon sob fundo vermelho cintilante: “Zapavora”.
O
nome veio dos versos da canção “Nosso amor assim nos apavora”, de... quem
mesmo? Se me lembrar, prometo contar antes do final. Hippies, broncos, darks, mods, punks e
distraídos em geral, todos se encontravam por ali. O cigarro ainda não era
proibido em recintos fechados e o que era proibido circulava com igual
liberdade, por isso o ar era embaçado e quente, dava para contar com faca ou
tomar como sopa de cogumelos.
À
direita, balcão-recepção-toques; à esquerda, mesas e tamboretes altos de
fórmica; ao fundo, a escada de madeira que conduzia ao “porão”, onde ficava o
palco e o segundo acesso, pela Rua dos... Finados (- Nome engraçado para uma
rua, não? Na placa lia-se “Rua Aurora”, mas todos ignoravam solenemente).
Girava a roda dos 80, essa
“carroça que perdeu o condutor”, nos versos do profeta Raul Seixas. Éramos
ingênuos como passarinhos e nem sequer sabíamos ser esnobes. Cabelos
desgrenhados, barbicha de guerrillero,
jeans desbotado, botas de couro - e o peito? – Ainda cheio de amores vãos. A verdade é que éramos todos mais ou menos
matutos, rapazes e moças, do interior e da periferia, ainda que libertários:
podia-se perfeitamente deitar com Glória e acordar com Alice e vice-versa.
O balcão tremia e a
escada rangia ao som das bandas malucas que se apresentavam por ali: Necrose,
Metralhatcheca, Sexo & Espíritu (versão local dos Sex Pistols). Grupos um
tanto amadores, alguns inclusive precisando de aulas de violão. Não importa.
Sabiam gritar palavras de ordem – Viva a Maria e abaixo o Sarney! - e aprontar
as cenas que se repetiam na platéia, como no dia em que a Martilla pirou - agora
eu conto:
Martilla fez o primeiro e
segundo anos de História de forma impecável. Estudava dia e noite, era a
primeira a responder em sala e escoltava a Eloá (suspiros) para cima e para
baixo. Depois, desandou.
Mas
não de repente. Teve a fase dark,
esses parentes oitentanos dos mods, os moderninhos da Swinging London. Cortou o
cabelo à la garçonne, passou a usar jaquetinhas pretas com gola Mao, falar Goddard
e Nietsche, dançar ao som de Strokes e Strawberries. Depois, veio a fase punk:
Martilla
desencabelada, desajuizada e com muito gin-tônica no coco, dançando ao som dos Metralhatcheca.
Mas que lio! A segurança era mínima,
os shows eram precários. No auge da balbúrdia, enquanto o baixista cuspia Smirnoff
sobre a platéia, a Martilla, que não levava calcinha, desmaiou sobre o palco.
Quinta
à noite era New Wave, então, já sabe, B-52’s rolavam como água: Party out of bounds, Bring me back my
man! Nem todos gostavam, é verdade; os guerrilleros melancólicos
que curtiam Joan Baez, os metaleiros convictos detestavam. Mas punks de
butique, anarquistas e mulheres enchiam a pista de dança all night long. Muitos solados de sapatos se gastaram
naquela festa que parecia não ter fim.
Conversa típica com o
recepcionista:
- Salve! Tem chá?
- Dê a volta no
quarteirão pra ver se tá limpeza.
Você fingia dar a volta
no quarteirão:
- Mais seguro que prisão
federal.
– Pega leve, xará. Veja o
caso da Martilla...
Éramos
um pedaço de cada coisa e energia não faltava para incorporar a cada dia um novo
caco ao vitral. Ronildo parece ter se esquecido de juntá-los. Apareceu um dia
no Zapavora vestido de Tarzan, com um fêmur de boi ensanguentado debaixo do
braço, brandindo o livro Sol e Aço de Yukio Mishima. Primitivo e concreto. - Um
brinde ao Ronildo e a todos os heróis que tombaram antes da hora! A poesia há
de resgatá-los de algum modo do silêncio das pedras.
Nenhuma
lua projetaria nossa sombra para sempre, subindo a Rio Grande do Norte,
cruzando a trincheira. Punks atrapalhados, suburbanos copiando modos de
citadinos, por sua vez copiados de outras metrópoles. Românticos libertários,
sonhando com revolução e glória.
Passei
muitos anos depois pelo local. Outro caixote de concreto e vidro enquadrava a
visão daquele ponto da cidade. Nada de pórtico de madeira, música áspera,
cheiro de vodca, gosto acre de cogumelo. É tudo tão claro agora. - Faça-se luz!
- Que tolice... O engenho da imaginação saberá sempre quando acender ou apagar
o interruptor.
©
Abrão Brito Lacerda
01 03 18
Anos 80...Diretas Já na utopia política.Faltou a ficha limpa desde aquela época.Marxismo rolando abaixo junto ao muro de Berlim. A bocarra voraz do capitalismo selvagem mostrava os dentes mais livremente. Muitos não suportaram como o Ronildo e seus bigodes Trotskistas, como Noel de Viçosa como a antecipar a descrença no projeto Petista de Poder. Muitos não suportaram a solidão bruta e a falta de expectativas daqueles os anos 80. Muitos nem viram os anos 80 passando, seja por excesso de alienação, seja por excesso de drogas. Alguns afirmam que quem conta sobre os anos 80 é porque não viveu. Só você, como bom historiador de formação pode estar de ambos os lados. Dos que viram, viveram e podem textualizar para que o silêncio não se estenda sobre as coisas, tornado-as cada vez mais frias, mais cinzas como só o pretende a incompreensão humana. Essas suas crônicas trazem de volta a alegria louca daqueles anos, da felicidade incutida de utopias e alguma reflexão para que nos anos futuros, a sociedade brasileira não permita mais tal arrocho militar empresarial sobre a sua juventude. E que as juventudes de agora tenha dias mais ditosos... num parece né! mas num custa desejar... abraços...
ResponderExcluirSalut, John,
ResponderExcluirLegal suas palavras. Está na hora de contar nossa história. Alguns como você escreve poesias, coisa que eu não consigo fazer. Eu me contento com uma prosa IRRESPONSÁVEL e irônica, temperada pelo nosso sagrado HUMOR. Em breve você estará de volta ao texto artístico, tenho certeza. Grande abraço,
Abrão