Sentado em uma poltrona marrom encardida,
seu Alfa assiste a seu programa favorito na TV. Não se trata do “Show da tarde”
nem do “Jornal das quatro”, mas sim do “shoptime”, cheio de novidades interessantes,
como o multiprocessador Vavita, uma revolução no mundo dos alimentos. O
multiprocessador Vavita é prático, fácil de usar e pode ser comprado em trinta
vezes no cartão. Seu Alfa ergue as sombrancelhas ao ouvir a oferta anunciada
pela garota-propaganda, ou melhor, senhora-propaganda.
Pelas
paredes do quarto, diversas lembranças e fotos penduradas. Em uma delas, seu Alfa
posa com a equipe de futebol do exército. “Eu era lateral esquerdo”, afirma com
uma ponta de orgulho. Na clássica formação de metade de cócoras e a outra
metade em pé, ele aparece aprumado e confiante, deve ter sido um bom lateral. Em
outra foto, ele perfila com farda e capacete debaixo do braço. “Sou o do meio,
na primeira fila”, aponta com um viés de nostalgia.
- Era muito difícil a
vida no exército?
- Tinha que levantar
muito cedo, ter disciplina, andar com a farda impecável e as botas sempre
engraxadas. Mas a vida de músico era melhor do que a de soldado raso.
Tocou
primeiramente na Banda Sinfônica da Aeronáutica, com noventa integrantes. Depois
foi para o exército, onde tudo era mais difícil. “Meu amigo João Brás não tinha
jeito para a música. Como não gostava de dureza, foi ser cozinheiro. Todo mundo
pensa que cozinheiro de caserna passa o dia inteiro descascando batatas. Mas é
o que come primeiro.”
-
Deve ser concorrida a vaga de cozinheiro de quartel.
-
O menu é muito simples, conta mais a quantidade do que o sabor dos pratos.
O
clarinete está cuidadosamente alojado no fundo de uma gaveta, dentro de um
estojo preto com interior aveludado. Seu Alfa toma-o com gesto carinhoso,
afinal ele foi o seu ganha-pão durante os longos anos em que passou mudando de Caxambu
para Duque de Caxias, de Pirassununga para Pindamonhagaba. Ensaia um dos números
de sua predileção: “Tiro ao Álvaro” de Adoniran Barbosa. O fôlego não é mais o mesmo, mas as notas
ainda são justas e executados no tempo certo.
-
A vida era boa, havia muita camaradagem e brincadeira.
O posto de sargento devia
conceder certos privilégios e a despensa do quartel ajudava a alimentar a
família numerosa. Havia também o trabalho
eventual de ambulante, que garantia uns trocados a mais.
Hoje, todos se preocupam
com sua saúde. “Mas não estou tomando muitos remédios. Só esse aí (Sinvasmax,
comprimidos revestidos para o controle do colesterol) e aquele ali (Bissulfato
de Clopidogrel para a pressão, uma drágea depois do almoço).”
Infelizmente,
todos dão também palpites em sua vida. “Papai não pode mais dirigir, não tem
mais reflexos”; “Vende o carro e põe o dinheiro na poupança”; “Tem de parar de
ficar viajando como uma formiga, aquieta-te em casa”.
Tudo, menos isso! Seu Alfa
escapa para uma cachacinha na esquina, pois ninguém é de ferro, muito menos as
juntas enferrujadas de um aposentado.
Dizem que ele paquera as
garçonetes, quando há alguma por perto. Mas isso é falso. O mais provável é que
ele inspire respeito às senhoras que atendem no bar. O Bar do Tião não é como
os bares da zona chique da cidade, cujas atendentes desfilam entre as mesas. E
há outra diferença ainda maior, só notada no momento de pagar a conta.
Há
muitas pilhérias motivadas pela aparente ingenuidade do seu Alfa, a qual se
acentuaria após a primeira dose. Como esta: a família tinha alugado uma casa nas
cercanias de Ouro Preto para o feriado. Na época, seu Alfa tinha passado por uma
cirurgia de ponte de safena e alternava os antibióticos com doses religiosas da
branquinha. No entanto, ninguém conseguia fazê-lo se alimentar direito e toda a
família acabou se metendo na história. Na
hora do jantar, que consistia de piaba frita, arroz, salada e feijão tropeiro,
encarregaram-me de ir buscar seu Alfa, afinal era imperativo que ele comesse.
Encontrei-o no bar ao lado da igreja. Empurrei
a porta basculante, tipo faroeste, e me dirigi ao balcão, onde ele estava
apoiado. “Seu Alfa, mandaram-me chamar o
senhor para jantar. O senhor ainda não comeu nada”, disse em um tom que era
praticamente uma ordem delegada da família. Ele me contestou, afirmando que já
tinha comido. “Como assim, já comeu?” Então, ele enfiou os dedos polegar e
indicador no bolso da jaqueta, retirou uma piabinha frita e a levantou diante
dos meus olhos, como se fosse um troféu: “Aqui está!”
De
outra feita, por época dos preparativos do natal, encarregaram-me de acompanhar
seu Alfa na compra do presente de amigo oculto. Prestativo como sempre, chamei
o elevador, abri a porta e aguardei que ele
entrasse. Quando apertei o botão do térreo, notei que ele estava me olhando de
forma intrigante. “Que foi, seu Alfa?” Ele me respondeu com a maior inocência
desse mundo: “É você quem vai me levar de volta pro quartel?”
Como
dirigir nessas circunstâncias? Os filhos fazem muito bem em separá-lo do
volante. Seu reino agora é a poltrona marrom, ligeiramente poída no encosto e
nos braços. Assistindo ao seu programa favorito, ele sorri satisfeito com a
senhora-propaganda que faz a promoção da supergrelha Fast Steam: “Com Fast
Steam, preparar um suculento bife ou aqueles legumes na manteiga virou
brincadeira. Você não tem tempo para cozinhar? Acha que comer bem é um
privilégio? Chegou Fast Steam. Disponível nas cores cobre, prata e ouro. Em vinte vezes no cartão...”
©
Abrão Brito Lacerda
01 03 18
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