Dez horas da manhã, Rua Castelo
da Beira, número 717, apartamento 404, como nos velhos tempos, uma trip incidental pela cidade. Não queremos
rush para chegar lá, queremos curtir um dia de sol através da
janela de um ônibus. No coletivo azul como o mar de mármara, há muitos lugares,
nos pontos seguintes todos os assentos serão ocupados. Entramos no coletivo em
perfeita ordem, indistintos “commuters”,
escolhemos nossos lugares e sentamo-nos. Nenhum passageiro parece ter pressa
além da habitual; são todos traquejados no ritmo das ruas da capital...
Um chato sobe no ponto
seguinte e começa a distribuir cartelinhas vermelhas acondicionadas em um plástico
ordinário – faço um gesto de recusa quando ele me estende um pacotinho com mão
grassa. Meu amigo toma a cartela com um gesto mecânico e coloca-a sobre o assento,
o que é repetido pelos demais passageiros. Aí o chato abre a matraca e desata a
falar. Lá se vai a ordem e o respeito ao ouvido alheio. “Bom dia, meu nome é X,
trabalho com recuperação de dependentes químicos, eu mesmo sou um ex-dependente
químico, estou distribuindo minha mensagem e pedindo ajuda... Assim fala o
chato, o mais alto que consegue e postado no meio do ônibus para que nenhum ouvido
lhe escape.
- Dependente químico da
malandragem, este é o tipo mais perigoso de viciado, comento gentilmente aos
ouvidos de John.
- Aposto que a droga que
ele está vendendo é bem pior do que aquela que ele consumia, responde meu amigo.
Miro a capa do folhetinho
ensebado: “Mensagem de Fé e Salvação”.
- Isso é droga pesada!
Vê-se que esse pobre homem trocou seis por meia-dúzia. Repare nos olhos dele.
São olhos vidrados de quem não conhece uma boa
noite de sono há pelos menos uma semana.
O agita-se ante a
indiferença daquela gente e resolve ser mais veemente: “Mesmo que não haja alcoólatra,
viciado ou traficante em sua família, você não pode se sentir seguro. Em Tobias
capítulo 17, versículo 118, a bíblia diz: ”Ai daquele que está de pé, porque poderá
cair duro no momento seguinte!”
Ninguém pisca, é
realmente de estarrecer a dureza dos corações dos habitantes da cidade grande.
O homem mostra então a que veio e o peso do rancor que carrega,
cafajesticamente dissimulado em humildade: “Desgraçado seja aquele que não
socorre o sofredor! João avisa em Apocalipse, capítulo 9, versículo 22...”
Nem um tilintar de
pratinhas O homem despeja maldições bíblicas sobre a civilização que é capaz de
gerar monstros frios como os passageiros deste ônibus urbano.
Conformado, enfim, repassa
de assento em assento e coleta suas cartelas, que lhe são devolvidas com o
mesmo gesto mecânico.
- Será que mudei tanto
assim em meus anos de interior? pergunto
a meu amigo. Cheguei a ficar comovido com o discurso daquele pobre diabo.
- Deixar esses chatos
falarem é em si um ato de caridade. Você os escuta e, ao mesmo tempo, os ignora
totalmente.
- Mas por que não o jogaram
para fora do ônibus, como certamente desejariam?
- Ele deve ser sindicalizado.
Não notou que mostrou um passe ao motorista? Pode subir e descer do ônibus quando
lhe apraz. O passe é fornecido pela prefeitura, o que quer dizer que “nós”
pagamos por suas viagens.
- Não seria melhor pagá-lo
para ficar em casa, como os aposentados, onde Deus pode ouvir suas súplicas sem
interferências?
- Há gente que cura um
vício trocando-o por outro. Lembra-se da Janaína? Treze anos com a cocaína,
doze com o Jorge e agora na Assembléia de Deus.
- Ela era melhor na época
da cocaína, para ser sincero.
- Porque tinha vinte anos,
eu sei.
Estamos nestas profundas reflexões quando duas
senhoras acenam do ponto, carregadas de sacolas. Tem gente que não se manca.
Elas tentam subir no ônibus de lado, pois de frente mal daria para passar seus quadris
volumosos. Agarram-se à porta com as duas mãos e projetam seus pesados fardos para
dentro do ônibus. A carroceria range, o povão grita “Ohhh!”. As duas vikings
tentam em seguida passar pela roleta. É impossível, as senhoras não estão
vendo! Mas elas conseguem, por incrível que pareça, espremendo-se entre as
grades e distribuindo sacoladas a torto e a direito. Você está sentado
confortavelmente e não ousa dar lugar a uma pessoa com bagagem? Tome uma na cabeça!
Pensa que é higiênico e despreza os odores estranhos? Sinta o aroma desta
axila!
-
É por isso que esses veículos são toscos assim, você não acha? observo ao
ouvido do John. Qualquer um juraria que foram construídos para carregar gado.
- Que veículos?
- Os ônibus, como este
onde estamos.
- Acho que você se deixou
levar longe demais pela comodidade do automóvel. Não estamos em Nova Iorque ou
em Barcelona.
- O que é um túnel de
metal dividido por tubos, equipado com assentos de pvc e cujo rosnado é
reconhecido por todos os usuários?
- É o conceito minimalista
de transporte de massa, contribuição brasileira à modernidade.
A topografia de Belo
horizonte tampouco ajuda. Além dos morros e das curvas infinitas, tem também buracos,
quebra-molas, carrocinhas de catadores e tapumes na pista. O motorista com
certeza não está entre os seres mais civilizados do trânsito e deve receber
treinamento especial para não ser. O veículo evolui aos sopapos: um safanão para
trás quando arranca e outro para frente quando freia. Quebra tudo pra direita e
depois pro lado contrário. É nessas horas que um lugar sentado vale ouro.
Baldeação
no centro, descemos na Avenida Amazonas e seguimos a pé até a Rua dos Guaranis.
Atravessamos a Avenida Paraná em ruínas, devido às obras do futuro BRT. As obras levam tantos anos e a qualidade do sistema
atual é tão mesquinha que os usuários estão calejados e não mostram qualquer
amor pela cidade onde vivem.
Pisoteado
em todas as direções por multidões apressadas, o centro da cidade é uma espécie
de deserto superpovoado. Aqui e acolá, entre as fachadas de gás carbônico,
sobrevivem símbolos do passado: “Sindicato dos Chauffeurs de Belo Horizonte”,
lê-se na placa coberta de pó, espremida entre dois viadutos; “Congregação
Cristã Operária”, “Quadra de football”, ainda
com a grafia antiga.
- Ouvi dizer que o
“Sindicato dos Chauffeurs” agora se chama “Sindicato dos Condutores
Profissionais” e que a Congregação Cristã Operária não existe mais.
- Você acha que deveríamos
soltar vivas a nosso projeto de civilização? replica John, só para provocar.
- Acho que as ruínas
representam o apogeu do poder criativo do homem. Como a fênix, que renascia das
cinzas...
- Você quer dizer que deveríamos
proclamar com orgulho: “Brasil, um país em ruínas”?
O 3301B passa
pontualmente atrasado. O ponto fica em frente às grades de ferro fundido de um edifício
em estilo neoclássico, como para provar que esta cidade já foi mais bonita um
dia.
Próxima parada, Praça
Raul Soares. Um grupo de velhinhos acena, cada um com sua carteirinha na mão.
Os degraus da porta mais parecem obstáculos de uma prova de step para eles, então é preciso
paciência. Uma senhora põe o pé no primeiro degrau; empurram-na para cima e
sustentam para que não volte em marcha a ré. Os assentos preferenciais estão
ocupados, desculpem, vocês devem ir lá para trás. Outro velhinho põe o pé no
degrau...
- Como é triste
envelhecer em uma cidade grande... suspira meu amigo.
- Contudo, ninguém quer
deixar este mundo.
- Os edifícios têm um
tipo de beleza que não se deforma com a idade. Gente é outra coisa.
- Não sei se estou de
acordo, observo, enquanto duas mulheres sobem no ônibus e vêm sentar-se à nossa
frente.
- Mãe e filha? cochicha
John.
- Está na cara que sim.
Mamãe
tem pele alva e esticada, vê-se que é do tipo que se cuida com cremes e
massagens. A filhinha é bronzeada e suas curvas estão perfeitamente delineadas
pelo jeans:
-
Nada como uma mulher macia e experiente, arrisco um comentário.
-
Prefiro a apertadinha mesmo, contesta John, sem qualquer cerimônia.
- Você acha que vou
escrever isso?
-
Pois deveria. Como escritor, não deve omitir a verdade ao leitor.
-
E desde quando escrever é dizer a verdade?
Nosso destino é o Castelo,
bairro localizado numa parte da cidade que cresce sem parar e oferece um
exemplo curioso de nossa evolução urbana. Há prédios grandes, médios e pequenos,
casas idem, lojas, postos de gasolina, supermercados, mas parece que parques e
áreas comunitárias estão definitivamente fora de moda. Não há nada que lembre
lazer por aqui, nenhum menino correndo atrás de uma bola, nenhuma menina
pedalando numa praça – porque praça não tem.
-
Em um país com tanto espaço, por que as cidades foram transformadas em
labirintos de concreto?
-
A culpa é da Caixa Econômica Federal, responde John. Tudo financiado a perder
de vista, e os prédios brotam sobre a paisagem como cogumelos.
-
Quando éramos jovens e ripongas, podíamos sonhar em viver no campo e criar
galinhas.
-
Não diga isso, brou. Faz-me lembrar que foi há muito tempo...
-
Rua Castelo da Beira!
-
A civilização...
-
Chegamos!
©
Abrão Brito Lacerda
01 03 18
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