Falemos então de dois
grandes poetas brasileiros. Manuel Bandeira, um dos meus favoritos, sobre o
qual não me canso de refletir (ver minha postagem de 2 de setembro de
2012: “A Melancolia de Manuel Bandeira") e Castro Alves, um poeta relegado aos
compêndios de literatura brasileira e mais conhecido pelo nome que emprestou a
ruas e praças.
Ao pensarmos em Castro
Alves, pensamos no século XIX, um período histórico ignorado pela maioria e
considerado chatíssimo pelos estudantes, que são martelados com aqueles textos
românticos, onde o beijo acontece na página 50 e o casamento só lá pela 200. Culpa dos manuais de literatura.
Mas não estamos aqui para
chatice, então vamos ao fato. Bacanal é
o poema de abertura do segundo livro de Manuel Bandeira, intitulado Carnaval, publicado
em 1919 e um dos precursores do movimento Modernista:
BACANAL
Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!
Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada,
A gargalhar em doudo assomo...
Evoé Momo!
Lacem-na toda, multicores,
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos...
Evoé Vênus!
O alfange rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que eu não domo!...
Evoé Momo!
A lira etérea, a grande Lira!...
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos.
Evoé Vênus!
(1918)
Baco é o nome romano do
deus grego Dionísio (que nos deu o adjetivo dionisíaco), deus do vinho,
da embriaguez, dos excessos, especialmente sexuais, segundo
a Wikipédia; Vênus (ou Afrodite, do nosso “afrodisíaco”), deusa do amor; Momo,
personificação do carnaval; enfim, Evoé, o brado de invocação a Baco nas orgias
antigas.
Manuel Bandeira |
Portanto, o poema é um
convite ao prazer, ao vinho, ao sexo e à música, ao desregramento, enfim... à
orgia. Mas, ironicamente, ao escrever o poema, que surge no livro datado, tal
qual publicado acima, o poeta estava triste e recluso, havia perdido a mãe e a
irmã que dele cuidava, provavelmente não bebia nada mais do que água e sem
dúvida não tinha nenhuma Vênus compreensiva por perto para aplacar-lhe o desejo.
Mas o poema é um engenho
de palavras e a arte não foi feita para retratar o real, senão para substituí-lo
por algo mais lúdico e representativo das sensações humanas.
Vamos agora ao poema de
Castro Alves. Ele se intitula Mocidade e Morte e algumas estrofes estão
transcritas abaixo:
Mocidade e Morte
Oh! Eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minh'alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela n'amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
— Árabe errante, vou dormir à tarde
À sombra fresca da palmeira erguida.
Mas uma voz responde-me sombria:
Terás o sono sob a lájea fria.
[...]
Eu sinto em mim o borbulhar do gênio.
Vejo além um futuro radiante:
Avante! – brada-me o talento n’alma
E o eco ao longe me repete – avante –
O futuro... o futuro... no seu seio
Entre louros e bênçãos dorme a glória!
Após – um nome do universo n’alma
Um nome escrito no Panteon da história.
E a mesma voz repete funerária: -
Teu Panteon – a pedra mortuária!
O poema de
Castro Alves foi publicado em 1870, em tempos da luta abolicionista no Brasil,
à qual ele se aliou. Ele é marcado por um dramático embate entre vida e morte,
ideal e frustração, ascensão e queda. Possui um tom elevado, um tratamento
solene do tema. O contrário do poema do Bandeira, que é mundano e sarcástico.
Castro Alves |
Bandeira sem
dúvida tomou emprestado o mote de Castro Alves, mas “quero viver, beber
perfumes” converteu-se em “quero beber, cantar asneiras”. Enquanto o romântico aspira à
grandeza e à purificação, o moderno deseja regalar-se com os frutos da terra,
no mais puro hedonismo: de posse do vinho, sorvê-lo até a embriaguez; ao ter
uma fruta madura, comê-la; ao conhecer uma mulher atraente... convidá-la para o
chá.
Pois esta é a essência da modernidade, e continua sendo mesmo em nosso
mundo virtual, que pretende substituir a experiência direta por uma imagem
interfaceada pela máquina. Temos pressa e tudo é agora, ao alcance de um clic. O fundamental é não se entregar a essa
substituição com a fatalidade do poeta baiano. É preciso ser irônico, aceitar a
fragmentação permanente das coisas, beber, gozar sem se deixar levar. Em suma:
ser moderno e não romântico.
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Abrão Brito Lacerda
2013
Abrão Brito Lacerda
2013
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