O corpo seccionado - cada parte tem o seu valor. |
“E até as mulheres ditas escravas, já não
querem servir mais”, dizia Raulzito na canção Novo Aeon. Mas, o que ironiza
Raul Seixas, afinal? O desejo masculino por uma amante solícita, ou, ao contrário, a
impotência masculina diante dos avanços da mulher?
Porque quando a mulher
avança e conquista espaços, ela o faz movendo as instituições do mundo
masculino, que sempre buscou, através da história, dominá-la e submetê-la. E
dominar a mulher é sobretudo possuir seu corpo - corpo cuja beleza inspira o
homem mais do que qualquer coisa e cuja feiúra desperta nele o mais rasgado
desdém.
Pastores,
artistas, médicos, legisladores, todos querem apreender o corpo da mulher,
aprisioná-lo, regulá-lo, enfim, possui-lo de algum modo. E a mulher vem
cumprindo este papel ao longo da história, moldando-se, sacrificando-se pelo
prazer estético ou ditatorial do homem.
Podemos
nos perguntar se neste início de século XXI as mulheres são realmente livres
para usarem seus corpos como quiserem, simplesmente porque podem se vestir com
liberdade na maioria dos países, mostrar-se ou ocultar-se, segundo a regra da
moda ou a preferência pessoal. Mas, para quem ela se veste? Para quem ela se
despe?
O
corpo da mulher continua em muitos aspectos a ser regido pelas convenções do
mundo masculino, na moda, na ciência e na lei.
Na Antiguidade, as roupas masculinas e femininas eram idênticas. |
Nem
o espartilho nem o cinto de castidade foram inventados por mulheres. Tampouco o
foi o salto alto (o rei Louis XIV foi o primeiro a lustrá-los, nos idos do
século XVII). A burka, muito menos. Terá
sido uma invenção feminina o cinema pornô? O Implante de silicone? A lingerie?
Para
não soar quadrado, consulto as manchetes na internet - e o que encontro?
“Em pleno siglo XXI uma mujer acusada de brujería es quemada viva”,
está no site do Emol. Tendencias & Mujer de 8/2/13. A matéria narra mais um
crime extremo contra a mulher, desta vez na Papua Nova Guiné, onde uma mulher, “acusada
de bruxaria” foi torturada e imolada pelo fogo em via pública, sem qualquer
reação adversa dos passantes.
Esta foi no país dos
aborígenes, é certo, onde a evolução parece às vezes andar ao contrário.
Mas
está também no Le Monde, porta-voz da França civilizada: “SANS-CULOTTES – Les Parisiennes peuvent porter
le pantalon en toute légalité” (“Sem culottes – As
parisienses podem usar calça comprida em total legalidade”), na edição online
de 5/2/13. Então, a lei quer proibia às mulheres usarem calças compridas foi
finalmente abolida. A lei não tinha mais efeito algum, é certo, já que a calça
comprida é hoje peça básica do vestiário feminino, mas seu simbolismo e
sobretudo sua história são interessantes. Alguns fatos:
A lei contra o porte de “culottes” por parte
das mulheres foi instituída em novembro de 1800, ou seja, ainda no rastro da
Revolução Francesa. As culottes eram
espécie de bermudas justas que iam até a altura dos joelhos, onde eram presas
por meias (aparece nos retratos antigos do rei Luis XV e do presidente
americano George Washington). Eram roupa de gente fina, os pobres não tinham
meios de usar. Há inclusive o episódio revolucionário em que os pobres
invadiram Paris. Eram os “sans culottes”, os descamisados de hoje. Gente que
queria sua parte no banquete da liberdade, mesmo que nu com a mão no bolso.
No Renascimento, a saia armada e as camadas de tecido aprisionavam totalmente o corpo da mulher. |
Culotte
era roupa masculina. Curiosamente, com a evolução, foi diminuindo de tamanho e
mudou de sexo: hoje culotte é
simplesmente “calcinha” em francês.
Enfim,
já naquela época, e com o vale-tudo que virou a revolução, as mulheres que
saíam às ruas para gritar slogans começaram a se apossar da peça da
indumentária masculina, pois ela dava mais liberdade de movimentos e era mais
confortável. As galhardas cantavam inclusive Nous
portons la culotte (Nós
usamos calças), desafiando a supremacia masculina:
"En garçons habillées marchons ;
Pour vaincre les despotes,
Adieu nos chers parents
C'est les femmes d'à présent."
Pour vaincre les despotes,
Adieu nos chers parents
C'est les femmes d'à présent."
“Vestidas de rapazes,
marchemos;
Para vencer os déspotas,
Adeus queridos pais,
Somos as mulheres de
hoje”.
Resultado: a criação da
tal lei, para por um freio à pretensão feminina. Posteriormente, durante a Belle Époque (final
do século XIX até a 1ª Guerra Mundial) algumas exceções foram admitidas na lei,
como o fato de ser jornalista. Mas as mulheres já usavam pantalons –
aliás, graciosos – em alguns ambientes, como se pode ver nas imagens abaixo e,
sobretudo, para andar a cavalo ou de bicicleta.
Mas foi com as duas
grandes guerras do século XX e a necessidade das mulheres ocuparem os lugares
dos homens na retaguarda, como operárias, motoristas ou bombeiras, que a moda
pegou. Nos anos 50 entrou definitivamente no cotidiano, com aqueles modelitos stretch
colados ao corpo que tiravam o sono de nossos avôs.
Bem, antes de recuar um
pouco mais no tempo, para ver como começou esta história de “com calça - sem
calça”, mais uma manchete online, desta vez da CNN, em 5/2/13: “55th
Grammys: standard and practice wardrobe advisory” – Regras de vestimenta
dirigidas às mulheres para a festa de entrega do 55º prêmio Grammy, o Oscar da
música americana. Diz uma das regras: “Traseiros e peitos femininos devem estar
adequadamente cobertos. Roupas tipo fio-dental são problemáticas. Evite mostrar
carne nua sob as curvas do traseiro”.
As regras parecem
descabidas, mas foram instituídas após algumas “divas” como Beyoncé e Lady Gaga
aparecerem com coisa demais à mostra para receberem seus prêmios.
Que
absurdo proibir a mulher de se vestir com liberdade! Ora – pensando bem – por que
elas precisam ir a um evento público com o zoológico à mostra? Será que é
realmente confortável? Ou trata-se apenas de marketing, onde o corpo,
extensivamente explorado como peça de publicidade, acaba por se tornar de
domínio público?
Culottes do final do século XIX. |
E se o corpo individual
se torna público ele não pertence mais a quem ele é de direito. Torna-se objeto
de alienação. No final das contas, trabalho para os seguidores de Freud.
No entanto, na
Antiguidade, não havia diferença entre vestimentas masculinas e femininas, a não
ser para detalhes ou cores. Roupa era roupa, não tinha sexo. Aí veio o
Cristianismo - com os doze apóstolos homens de Jesus Cristo - que se expandiu e
dominou o Ocidente, ocupando a função reguladora do antigo Império Romano, de
quem aliás herdou a estrutura administrativa.
Surgiu o pecado, o tabu, a vergonha. Os espaços públicos da igreja
tornaram-se lugares de homens, as mulheres que optavam pela religião eram
enclausuradas em conventos (como podem ver, que evolução comparado aos dias de
hoje!). Alguns séculos depois, estavam queimando bruxas em fogueiras.
Foi neste contexto que
surgiram os precursores da calça comprida, que davam maior liberdade de
movimentos e eram mais práticos. Mas, por mais de mil anos, até o advento da
Revolução Francesa, esta liberdade era exclusiva dos homens. As mulheres
permaneceram enclausuradas em vestimentas pesadas até que as citadas galhardas
que cantavam “Nous portons la culotte” resolveram sacudir o pedaço.
Entrementes, inventaram o cinto de castidade, o espartilho e outras formas de
torturar legalmente as mulheres (Pensando bem, já era melhor do que ser
queimada em fogueira).
O corpo feminino
é regulado até mesmo pela Constituição brasileira (1988), que, ao estender os
direitos de cidadania a partir da fecundação, apossa-se do ventre da mulher sob
um argumento político. O quadro legislador se completa com o Código Civil e o Código
Penal Brasileiro (1984), que utilizam o mesmo argumento biológico para
instituir a interrupção da gravidez como crime, a não ser em alguns casos,
prevendo penas de prisão para a mulher que cometer tal delito.
Os homens foram à guerra e as mulheres vestiram macacões. |
É o cúmulo da
hipocrisia, uma vez que aqueles que tão ferozmente querem se apossar do corpo
da mulher, sob escusas morais, filosóficas, políticas ou religiosas, não
demonstram qualquer sensibilidade para com a vida dos que vivem e morrem de
fome, violência ou negligência, coisa rotineira em nosso país.
Oculto
ou revelado, o corpo feminino reflete uma verdade expressa na canção de John
Lennon: “Woman is the nigger of the world” (“A mulher é o negro do mundo”,
a vítima de todos os preconceitos). Em
um dos trechos da música ele diz:
If she won't be a slave, we say that she don't
love us
If she's real, we say she's trying to be a man
(Se ela não quer
ser uma escrava, dizemos que ela não nos ama
Se ela é
autêntica, dizemos que está tentando ser um homem).
Se a política, o direito, a medicina, a religião e
outras formas de controle social continuam a regular o corpo da mulher, cabe a
pergunta: MULHER, DE QUEM É ESSE CORPO?
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Abrão Brito Lacerda
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É Abrão, provocante e audacioso o seu texto. Interessante constatar que o universo feminino não foi criado por elas mesmas.
ResponderExcluirGrande matéria!
"Livre pensar, é só pensar", era a máxima do Millor Fernandes. Mas é preciso também saber em que pensar e como pensar. Nestas horas, minha graduação em história me socorre, pois me permite viajar no tempo com facilidade. Tem também o campo imenso do corpo na arte, que pode ser uma ideia para uma próxima matéria...
ExcluirMuito bom Abrão! Sua pesquisa e texto me deu uma visão de como a humanidade foi, e ainda continua focada com o corpo feminino. Marilene Resende.
ResponderExcluirPois veja, Marilene, que o artigo que deveria ser no início uma provocação, ganhou consistência à medida em que fui reunindo os dados. Ele foi ficando independente e mudou inclusive meu ponto de vista inicial. Fiquei surpreso em descobrir que até nossa Constituição legisla sobre o corpo da mulher. Mas faltou dizer que o corpo masculino não sofre as mesmas restrições e intervenções diretas.
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