Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Meu primeiro contato com a poesia de Ferreira Gullar foi em
1981, ano em que foi publicada a coletânea Toda Poesia pela Civilização
Brasileira, reunindo a produção do poeta de 1950 até aquela data.
Bons tempos: tudo tão ingênuo e utópico. Ingênuo porque
ainda se acreditava em “revolução”, supondo com isso não apenas uma mudança no
sistema econômico e social, mas também uma transformação das mentalidades e dos
valores – em suma, acreditava-se que o homem ocidental poderia ser melhorado,
pois ele seria “vítima” do sistema capitalista, que o condicionava e oprimia. Utópico
porque os profetas do impossível abundavam, numa época em que os belos discursos
valiam ouro e aqueles que tinham o dom da palavra eram admirados como
verdadeiros ídolos. Alguns tinham o pé na era de paz e amor, cujos reflexos
tardios entre nós ainda se faziam sentir, outros sonhavam com a esquerda
marxista e estavam prontos a embarcar no primeiro torpedo suicida que
aparecesse. Felizmente, não apareceu nenhum.
Havia muitas fórmulas para operar tal milagre de
transformação e era preciso sonhar, assim como viver. Tempos muito propícios à
poesia. Último suspiro dos idealismos que sacudiram o mundo a partir dos anos
60 e que depois, já no final dos anos 80, desapareciam para dar lugar à figura
onipotente do “mercado”, aplastando tudo como um rolo compressor e tornando a
paisagem (interna e externa) uniforme e previsível.
Ferreira Gullar teve o privilégio de produzir o essencial de
sua possível neste período pós-guerra, pré-conformismo. E falava o que todos
queríamos ouvir.
Denunciava as mazelas sociais do Brasil, país que na época
alistava-se sob a alcunha de “terceiro mundo”:
Introduzo na poesia
a palavra diarréia.
Não pela palavra fria
mas pelo que ela semeia.
Quem fala em flor não dia tudo,
quem me fala em dor diz demais.
O poeta se torna mudo
sem as palavras reais.
No dicionário a palavra
é mera idéia abstrata.
Mais que palavra, diarréia
é arma que fere e mata.
Que mata mais do que faca,
mais que bala e fuzil,
homem, mulher e criança
no interior do Brasil.
(“A bomba suja”, transcrito
aqui apenas em parte)
Falava de coisas que fazíamos (fazemos) questão de desconhecer, como se não nos dissesse respeito:
No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade.
No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade.
No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade.
("Poema brasileiro")
Denunciava a opressão do “imperialismo” e levantava o
bastião da luta de resistência:
Homem comum, igual
a você,
cruzo a avenida sob a pressão do
imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem,
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga
suja de lama e de fome.
(“Homem comum”)
“Imperialismo” e “latifúndio” são palavras hoje relegadas ao
dicionário. Ninguém as citaria neste início de século XXI com a conotação que
tinham então. Mas, naquela época, com ditadura militar e guerra do Vietnã,
calar-se era para os frouxos. A poesia deveria ter uma função social, deveria
ser “engajada”:
Espalharam por aí que o poema
é uma máquina
Ou um diadema
que o poema
repele tudo que nos fale à pela
e mesmo a pele
de Hiroxima
que o poema só aceita
a palavra perfeita
ou rarefeita
ou quando muito a palavra neutra
pois quem faz o poema é um poeta
e quem lê o poema, um hermeneuta.
(“Boato”)
Não há dúvida que na poesia de Ferreira Gullar a palavra se
liberta totalmente das hierarquias e as fronteiras entre bom e mau gosto são
rompidas, muitas vezes de forma brutal. É o que acontece no célebre “Poema
sujo” – que deveria ser lido por todos os aprendizes de poeta destes tempos
confortáveis. O poema é muito longo – na verdade, um livro inteiro. Cito apenas
um pequeno trecho inicial:
azul
era
o gato
azul
era
o galo
azul
o
cavalo
azul
teu
cu
tua
gengiva igual a tua bucetinha que parecia sorrir entre as folhas de banana
entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como uma boca do corpo (não
como a tua boca de palavras)
como
uma entrada para
(“Poema
sujo”)
O “Poema sujo” mudou os meus conceitos estéticos para
sempre, desde o primeiro momento que o li. Expressava um monte de coisas que eu
mesmo sentia e possuía um ritmo e uma sonoridade alucinantes. Depois dele, o
dilúvio.
Bem, cabe-me agora colocar de pé minhas impressões sobre a
poesia de Gullar. O lado engajado e até mesmo grotesco de sua poesia é sobretudo
reflexo dos tempos bicudos em que viveu,
embora obviamente revele muito do seu próprio temperamento.
Gullar produziu lirismo do mais elevado quilate, poemas que
aderem a nossa memória e aos nossos sentidos para sempre. Como “Cantiga para
não morrer”:
Quando você for se embora
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
(“Cantiga
para não morrer”)
E o meu favorito, esta
jóia que por si só incluiria o poeta nos compêndios de clássicos de nossa
literatura:
Uma parte de mim
é todo mundo
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?
(“Traduzir-se”)
Ficam aqui registradas estas breves notas sobre este grande
nome de nossa literatura, esperando que o estimado leitor sinta-se compelido a
conhecer mais e busque os livros do poeta.
(© Abrão Brito Lacerda)
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