Melencholia I, gravura de Dürer, 1514 |
A melancolia é uma das vieilles dames da poesia e mesmo da literatura e da arte em geral. Muito fora de moda em nossos dias, já gozou tempos de maior prestígio, sendo inclusive definidora de um caráter e mesmo de um destino.
Na Grécia antiga, Hipócrates, o pai da medicina, forjou a teoria de que a boa saúde vinha do equilíbrio dos quatro humores (fluidos) fundamentais: o sangue, o fleuma ou pituita, a bile e a bile negra ou melancolia. A predominância de um desses humores, originaria compleições ou temperamentos diferentes, respectivamente, o sanguíneo, o fleumático, o bilioso e o melancólico.
Mais tarde, Aristóteles associou a noção de melancolia à criação artística, ao escrever que em alguns indivíduos a melancolia não produziria um estado patológico e sim um furor inspirado. Deste modo, ele relacionou a teoria médica de Hipócrates à do delírio inspirado de Platão, que seria a fonte da criação artística. Para Platão, a inspiração poética seria uma das quatro formas do delírio inspirado, enviado pelos deuses. As outras seriam a iniciação mística, a exaltação amorosa e a adivinhação profética. Como vêem, em muito boa companhia estava a melancolia.
Em finais da Idade Média, a noção de que o excesso de um dos quatro humores era a origem de todas as desordens do corpo e da mente se popularizou e os conceitos de humor e melancolia começaram a se separar. Dos humores resultou o humor, tal qual o conhecemos hoje, em uma longa evolução ao longo dos séculos (e sobre o qual escreverei em uma próxima postagem); já a melancolia ganhou a companhia do planeta Saturno e passou a incorporar o comportamento antitético, caracterizado tanto por inspirações delirantes e febre criativa quanto por tristeza e depressão. Foi esta noção que se desenvolveu juntamente com a poesia no ocidente e passou a alimentar o inconsciente poético.
Desta época provêm algumas das representações mais emblemáticas da melancolia, como a magnífica gravura do artista alemão, Dürer, que vemos na abertura deste texto, e sobre a qual falarei adiante.
Vejamos agora o poema que abre o primeiro livro de Manuel Bandeira, A Cinza das Horas, publicado em 1917:
Epígrafe
Sou bem nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugiu como um furacão,
Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó –
Ah, que dor!
Magoado e só,
- Só! – meu coração ardeu:
Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
Esta pouca cinza fria...
O poema de Bandeira é estruturado em forma de movimento descendente: começa “bem nascido” e termina no chão, na forma de uma “pouca cinza fria”. Todo o poema não é senão a descrição desta queda e posterior queima. Termina, portanto, com o sujeito debruçado sobre as cinzas do próprio ego, em posição marcadamente melancólica.
Bandeira tinha evidentemente consciência disso, tanto que o livro deveria se chamar inicialmente Poemetos Melancólicos. Como o poeta perdeu parte dos originais em sua estadia na Suíça, para tratamento da tuberculose, ficaram alguns poemas que deram origem ao Cinza das Horas.
O que fixa o sujeito melancólico nesta contemplação tão intensa? Na Melencholia de Dürer, que se constitui numa verdadeira alegoria do tema, há inúmeros elementos simbólicos que cercam a figura. Ao alto à direita, sobre a cabeça da figura, por exemplo, há um “quadrado mágico”, em cuja linha de baixo se pode ler a data de 1514. Se somarmos cada linha do quadrado, tanto no sentido vertical quanto horizontal, teremos o total de 34. Há uma pena de escritor ao chão, juntamente com um instrumento de carpinteiro, pregos e pedaços de madeira. Um cão magro cochila aos pés; há um grande bloco de pedra, depois um rio ao fundo e uma espécie de cometa no céu. Da cintura da figura pendem chaves. Ela está inclinada, com a cabeça apoiada à mão e o olhar surpreendentemente atento. Ela possui asas, mas está presa ao chão. Tem os louros da glória ornando os cabelos, mas o que a cerca sugere tristeza e impotência. Enfim, nenhum dos elementos que a circundam (elementos externos) responde de verdade a sua inquietação e ela está condenada a viver eternamente nesta reflexão.
Destas duas obras totalmente diferentes, um poema do início do século XX e uma gravura antiga, extrai-se a mesma fatalidade da condição do sujeito melancólico: um destino que se abate sobre ele e que o aprisiona. Refletir sobre esta condição passa a se constituir no objeto de sua existência.
Mas o poema possui um fator a mais, que caracteriza a sua condição moderna: a cinza fertiliza, permite um renascimento. Como o renascimento da Fênix (a ave mitológica que renascia das próprias cinzas). É através desta fresta que penetrará a ironia e o humor para oferecerem um escape ao sujeito. Veremos a respeito em outras postagens.
O que fixa, afinal, o sujeito melancólico? Freud também se debruçou sobre o tema em sua obra Luto e Melancolia. Para ele, “o melancólico contempla o vazio do seu ego e não se cansa de desmascará-lo”. Trocando em miúdos, o melancólico é um sujeito narcisista, que fixa o objeto perdido na tentativa de resgatá-lo do esquecimento. No entanto, este objeto já se subtraiu da sua consciência e não pode mais ser identificado, o que explicaria a expressão enigmática e ambígua do melancólico.
O poema nasce do desejo de abarcar este mistério, de explicá-lo e, embora esteja condenado a jamais compreendê-lo, produz uma fruição, na forma do arranjo artístico das palavras, que justifica sua existência. Porque o que se perdeu e se busca está dentro do próprio eu. Só a arte permite completá-lo.
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Abrão Brito Lacerda
17/02/18
Abrão Brito Lacerda
17/02/18
Combustível é o que venho buscar por aqui, todas vezes você publica algo.
ResponderExcluirPuxa, que definição do Freud...
Grande abraço, Abrão!
Nice, come over and over again. You're always welcome.
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