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HUMILDADE




Francisco era operário em uma fábrica de tubos para construção. “Operário qualificado”, como dizia orgulhosamente, pois já tinham se passado os tempos duros de servente, e ele agora desenvolvia sua jornada sob os mandos da direção. Sobe! Desce! Avisa! Busca!
            Em todos os seus projetos, aposentar-se naquele emprego era a prioridade. Contava os anos, somava as contribuições para a previdência, juntava as máquinas de sua futura oficina no quintal de casa, com a qual haveria de trabalhar até os dias finais da velhice.
            Suas atitudes variavam segundo o lugar em que estava. Em casa, submetia a paciente mulher a um regime espartano, vivia às turras com os filhos adolescentes. Dizia: “Se pisarem no meu calo, dou o troco!”; “É do aproveito que o pobre vive”; “Só fiz escola primária, mas quero ver minha filha professora”.
            Na fábrica era calado e obediente.
            Seu lazer resumia-se ao passeio dominical na feira livre, onde tomava cachaça com os amigos e comia com os olhos os queijos e frutas que não tinha coragem de comprar. Contava os três reais da cachaça e ainda voltava pra casa com 50 centavos no bolso:
            - A de sempre, Juvenal!
            Felizmente, tinha amigos mão-aberta que pediam a porção de paio e mandioca pra forrar o estômago. Nesses momentos, ficava tagarela:
            - Dentro de dois anos, me aposento. Já tô com as máquinas em casa pra começar a fazer dobradiças e rebites.
            - Seu filho vai trabalhar com você?
            - É um folgado, só dando uma lição naquele moleque. Qualquer dia chamo ele pra conversar de homem pra homem.
            A feira livre era uma profusão de cores e tipos humanos. A maioria quedava o tempo suficiente para escolher suas verduras e pescado fresco; alguns tardavam mais, justamente os frequentadores das barracas de bebida e tira-gosto.

            Um jovem de boa aparência suspendeu a lona alaranjada e entrou na barraca. Escolheu um dos tamboretes altos do balcão, pediu uma cachaça, pagou, tomou e depois se levantou para sair. Ao dar o primeiro passo, tropeçou nas amarras da barraca e, ao virar-se, notou que havia esbarrado em alguém, um senhor de meia-idade, que limpava os óculos e a camisa molhada:
            - Desculpe senhor, foi sem querer.
            Francisco continuou a enxugar os óculos, sem olhar para o outro. Buscou uma frase que traduzisse sua indignação, mas só sabia meia dúzia de imprecações para casos como aquele. O esbarrão havia lhe jogado cachaça sobre o rosto, seria ridículo se não fizesse nada.
            - O senhor está bem? Quer que eu lhe pague outra dose? ofereceu o estranho.
            O garçom também quis ajudar:
            - Posso lavar seus óculos?
            - Para isso não tem desculpas! desentalou finalmente Francisco, em um tom seco e gutural.
            Sua reação atraiu os olhares de fregueses e garçons. Levou a mão à cintura, como se buscasse alguma coisa.
            - Você deveria ser mais humilde... declarou Francisco.
            O jovem respondeu:
            - Já pedi desculpas ao senhor. Agora, com licença.
            E deu-lhe as costas.
            Francisco não pôde notar o olhar que o estranho trocou com o garçom, que foi por sua vez cuidar de outros afazeres.
            Ficou plantado perto do balcão.
            Os amigos o chamaram de volta ao bate-papo, pediram mais uma rodada:
            - Vocês viram que falta de humildade! Ele ainda me pediu desculpas! Que sujeito mais atrevido!
            - Foi só um esbarrão. Esquece.
            - É um maricas. Viram como ele estava vestido? Aqui na feira, nunca vi ninguém assim. Como aceitei ser desonrado por um almofadinha desses?
            Bebeu a penúltima dose em silêncio, remoendo o que lhe parecia ser a mais terrível das humilhações. Sempre tivera ódio de pessoas importantes, como os diretores da fábrica, que o tratavam com indiferença. Dispensou a última dose e voltou mais cedo para casa.
            A mulher estranhou ao vê-lo antes da hora habitual:
            - A prosa não tava boa?
            - Boa até demais, retrucou Francisco – e foi sentar-se em um canto da cozinha.
            Meia hora depois, a mulher ainda o encontrou acabrunhado e perguntou o que era:
            - Levei uma desfeita, desengasgou Francisco, deveria ter acabado com o sujeito, mas me afrouxei.
            - O que te fizeram, homem?
            Francisco contou o incidente da feira, sublinhando o “desrespeito” do outro, que havia “jogado cachaça em sua cara” e depois “pedido desculpas”.
            - E você não reagiu? teve a infelicidade de perguntar a mulher, normalmente pacata.
            - Não. Tava armado, mas fiquei com medo de puxar a arma.
            - Cabra frouxo, declarou a mulher.
            Francisco respondeu à insolência da mulher com um surdão no ouvido. Ela cambaleou, ele a atacou com socos e pontapés, até jogá-la ao chão. Tapou-lhe a boca com uma das mãos e desferiu-lhe mais agressões, até deixá-la prostrada sobre o piso da cozinha.
Pegou em seguida a arma sobre a mesa e saiu.
Perambulou até as duas horas da manhã, sem ter ao menos como tomar uma cachaça, dormiu em um beco, juntamente com alguns cães e bêbados. Acordou quando o caminhão de coleta passou para recolher o lixo.
Julgou que era direito seu voltar à própria casa.

            O incidente o obrigou a pedir desculpas de joelhos, o que fez mais para salvar a própria reputação do que a relação com a mulher. Teve ainda que entregar a arma aos cunhados, que prometeram ficar de olho nele.
            O mais difícil foi encarar o filho, que se levantou como defensor da mãe. Este não era a antítese paterna, mas era seu opositor. Já estava no segundo grau e tinha muito mais conhecimento que o pai, que havia permanecido atrasado e preso a idéias dos tempos das cavernas, segundo ele.
            - Por que você bateu na mãe? perguntou o filho, olhando Francisco nos olhos pela primeira vez.
            Francisco conteve a reação que lhe subia à cabeça como o vapor de uma panela de pressão. Bater em sua mulher era um direito seu, pensou. Ele era o chefe da família, nem seu pai, nem seu avô tinham afrouxado e ele não iria fazer isso:
            - Não venha você me aporrinhar, moleque preguiçoso! Sou seu pai, mereço respeito!
            Os dois se atracaram, ou melhor, Francisco atracou-se ao filho, desferindo-lhe violentos tabefes. Mas o rapazola era saudável e forte e esfregou a cara do pai no cimento áspero, após alguns segundos de intensa luta. Francisco praguejou, chegou a pedir que o filho o matasse para não passar por tamanha vergonha. Prometeu vingar-se.

            Sua vida passou então a ser um roer-se de remorso e ódio, em proporções desiguais, oitenta por cento de ódio, vinte por cento de remorso. Tornou-se mais carrancudo do que nunca, passou a evitar a feira nos domingos de manhã. Mas continuou a cumprir religiosamente a rotina na fábrica, sua última esperança. Teve que vender as máquinas do futuro ateliê para apaziguar a surra dada na mulher com churrasco e festa de aniversário. Precisava aposentar-se para recomeçar tudo de novo.

             A fábrica de tubos Coralitti S. A. pertencia a uma família de descendentes de italianos. Pais e filhos tocavam o negócio, ocupando os postos de direção e viajando para promover as vendas. Quase não circulavam pela cidade, a não ser em alguns circuitos exclusivos, com exceção de Lanzini, o filho mais jovem. Fora o último a entrar no negócio da família e discutia muito os critérios patriarcais de direção até então empregados. Seu pai era da velha guarda:
            - Nunca faça perguntas a um operário. Faça-o obedecer. Se achar que está certo, diga. Se achar que não, mande refazer, ensinava o pai.
            - Isso é incompatível com os princípios da gestão moderna. O tratamento dado a um operário deve ser o mesmo que damos a um diretor, argumentava Lanzini.
            - Um operário jamais entenderá o seu mundo. Para compreender você, ele teria que galgar posições dentro da empresa, o que não está ao alcance de todos.
           
Lanzini encostou-se pensativo ao corrimão do 3º andar, de onde se avistava toda a entrada principal da empresa.      Não tinha reais pretensões de mando, mas não podia negar que os ternos risca de giz e as gravatas italianas agradavam em cheio às mulheres. No mais, era simples e despreocupado, gostava de passear por lugares populares, inclusive a feira livre, nos domingos de manhã.
            Hoje era seu primeiro dia na condição de Diretor Técnico, convinha começar a trabalhar. Ouviu a pauta do dia dos lábios da secretária, chamou o contínuo que transportava encomendas entre o 2º andar e os outros departamentos da administração. Um senhor moreno, de meia-idade, apareceu. Era Francisco.
            Francisco mal acreditou nos próprios olhos quando pisou o tapete em frente à mesa do novo Diretor. Era o jovem da feira, o insolente que havia derramado cachaça em seu rosto! Era o filho do presidente, o homem que iria mandá-lo para o olho da rua, sem direito a queixa!
            - O senhor está bem? Parece pálido? perguntou a secretária,  ao ver que Francisco não conseguia sair do lugar.
            Francisco não respondeu, baixou a cabeça e deixou-se cair sobre uma cadeira. Empalideceu a ponto de precisar de socorro.
            - Sente-se, vou chamar uma enfermeira, disse a secretária, apanhando o telefone.
Francisco sentiu o olhar do Diretor percorrendo seu uniforme azul-marinho, reconhecendo seu rosto, seus gestos e sua voz. Foi com alívio e o mais acabado senso de vergonha que se deixou conduzir até a enfermaria.
            Deram-lhe licença saúde de três dias.

            No caminho até o elevador, deteve-se em frente ao corrimão. A fonte luminosa estava uns vinte metros abaixo. Pensou em se jogar e encerrar seu calvário de uma vez por todas. Retirou do bolso um pedaço de papel com uma escrita a lápis (resposta da filha, com quem tentava ainda se reconciliar) e leu para si mesmo:
            “Devemos ser humildes e aceitar nossos erros. O amor próprio e a prepotência levam à perdição.”
            Não entendeu o que aquilo queria dizer. Amassou o papel com um gesto grosseiro, jogou-o dentro da fonte e desceu as escadas.
©
Abrão Brito Lacerda

27/02/18

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