-
Juntar-me a uma mulher de novo, nunca mais, disse-me Jack, entre um trago e
dois suspiros, um “tapa” e uma piada. Prefiro as mentiras sinceras das
profissionais, elas mentem tão bem...
- Mas viver
sozinho é muito triste.
- Sabia
que os casados transam menos do que os solteiros?
- Sexo
não é tudo na vida. Tem também a parte social.
- Tipo
bolo de chocolate e estouro de balões em festinhas de aniversário...
- Não é
tão ruim assim, Jack, as crianças se divertem e os adultos falam de futebol e
novela. Que mal há nisso?
-
Obrigado. Prefiro continuar a ser um lobo solitário a me converter em um
cordeiro social. Em que pese a saudade da minha filha...
A filha
do Jack era uma linda garotinha de olhos azuis e imaginação fértil. Tocava teclado
e inventava histórias sobre bichos e alienígenas que eram publicadas no blog da
escola. Quanto à mãe, isto é, a ex-mulher do Jack, bem, vou contar um segredo...
Os dois
se conheceram nos tempos loucos da universidade, quando ainda havia bandas de
rock’n’roll nas noites de sexta-feira em frente ao Ciências Humanas.
Eu, Carlos Boaventura, preparava-me para
zarpar em direção a lugares mais promissores do que uma sala de aula quando ouvi
o chamado:
- Que
pressa é essa? Vai tirar o pai da forca?
Era o Jack,
nunca só e quase sempre mal acompanhado.
- A Luanda tá saindo da aula. Vamos esperar pra
irmos juntos.
- Luanda de Angola?
- Não, Luanda de Cambará do Sul.
Apareceu então uma gaza de olhos azuis, peito 92
e sorriso largo. Pensei logo: aí tem treta!
Tinha mais do que eu imaginava. Dei-lhes
carona e, no caminho, um bate-papo animadíssimo, ela estava se mudando para BH,
os dois estavam assanhadíssimos, perguntei se já se conheciam, responderam com
um riso descarado, deixei-os em casa aos beijos de língua e mão naquilo.
Três meses depois, a Luanda estava grávida. Pra
resumir a história: tiveram uma filha, a tal garota superinteligente, brigaram
como cão e gato, e a Luanda, que tinha o gênio forte do sul, acabou por expulsar
o Jack de casa.
De onde vem o jeito blasé do meu amigo.
Pela cidade, os tipos se sucedem, como o João Lucas,
alfaiate de profissão, homem refinado e eloquente como poucos. O João quicava sobre
sapatos marrons reluzentes com a desenvoltura de um adolescente, apesar de
estar na casa dos sessenta anos. Poderia perfeitamente estar ganhando a vida
como contador ou broker, mas decidiu ser alfaiate, para a felicidade de seus
inúmeros fregueses e freguesas.
Era subir a escada até o primeiro andar e lá
estava o João Lucas, trabalhando como um lorde, de colete quadriculado e camisa
branca:
- Salut,
John, tudo bem?
- Ah, professor, que prazer! Tenha a bondade
de se assentar.
- Obrigado, estou com pressa.
- Aceita café?
- Tem chá?
Falávamos de política e MPB, sua grande
paixão, e eu ouvia em primeira mão o noticiário local, pois o João, como todo
alfaiate que se preze, era um canal de fofocas ao vivo.
Além de ter opiniões iconoclastas:
- Ninguém pode ser feliz amando uma só pessoa.
A monogamia é uma prisão para os sentimentos.
- Salut,
João Lucas, até mais!
Algumas pessoas trazem nobreza de berço, assim
como charme e delicadeza.
A moça da padaria possuía estas qualidades sem
se dar conta. Quando saudava os clientes, sorrindo entre brioches, broas e
biscoitos, era impossível saber se estava triste, se o salário era baixo ou se
sofria de cólicas mensais.
Na seção de embrulhos, tomava os pães gentilmente,
colocava-os em sacolas pardas, pesava-os, colava a etiquetinha de preço e nos entregava
com um sorriso e um obrigado. Até às vinte horas, todos os bolinhos de chuva,
baguetes de gergelim, rosquinhas ao leite teriam partido. Era uma bela harmonia
de mente e corpo, gestos calmos e confiantes, pernas delineadas por uma legging
marrom, blusa amarela com o emblema da padaria bordado sobre o peito, estufado
como o monte Fuji.
Às vezes, a gracinha estava no caixa:
- Boa noite! Alguma coisa mais?
- Seu sorriso, se estiver à venda.
Ela ruborizava.
No dia seguinte, recebi uma chamada do Jack:
- Não posso ir ao sarau. Vou sair com a Merielle.
- Merielle?
- É. Merielle, da UFAB.
Ou seja, da faculdade. Provavelmente mais uma encrenca
em que se metia o professor Jack.
Duas semanas depois, outro telefonema:
- Não irei ao passeio na Serra do Curral.
Ficarei com a Merielle.
Fiquei feliz em pensar que aquela aventura da
meia-idade poderia encher o peito do Jack de otimismo e o fazer reconciliar-se com
o passado. Mas não foi o que aconteceu:
- Prefiro as mentiras sinceras das
profissionais!, continuou a repetir.
Estávamos no ap. do IAPI. Após um “tapa” e dois
suspiros, um gole e uma gargalhada, eu me propus a lhe contar o sonho que tinha
tido na véspera.
- Você sonha com mulheres? Eu prefiro
conquistá-las.
- É porque sou casado...
- Também fui... Mas conta, como foi?
- Desconexo, como todos os sonhos; me lembro
de um perfume amadeirado, uma pequena tatuagem na parte posterior do pescoço,
uma aliança de noivado...
Passei na padaria dois dias depois e notei que
a garota estava mais sugestiva: pela primeira vez, deixou entrever sob a gola da
blusa uma pequena tatuagem, semelhante à que eu vira no sonho. O perfume, que
fiz questão de sentir, era também amadeirado, misturado ao odor discreto do suor
de algumas horas de trabalho. A aliança também estava lá, no dedo médio da mão
direita. Enquanto caminhava até o caixa, hesitei em fazer referência ou não ao
sonho, talvez em tom de brincadeira, pensei, mas ela se encarregou de romper o
mistério:
- Pensei no senhor o dia todo - será
premonição?
Eu não soube o que lhe responder.
- Amanhã teremos éclair de doce de leite, seus
favoritos.
Quando contei esta história pro Jack, ele me veio
com essa:
- Em tudo parecida com a Merielle! É óbvio que
ela tá a fim de você.
- Que isso! Não tem nada a ver. E, na minha
idade...
- Nunca é tarde para aprender!
Por via das dúvidas, resolvi consultar João Lucas,
o alfaiate aristocrata. Indiretamente, como convém nesses casos. Relatei-lhe o
sonho, minha conversa com a garota, ocultando a parte da tatuagem e da aliança.
Melhor fora se tivesse ficado calado:
- A mulher envia sinais que devem ser
decodificados. Se ela decidiu verbalizar, é porque o seu caso é realmente
sério...
- Um pouco de ignorância faz bem à humanidade.
Fiz questão
de ralear minhas passagens pela padaria. Só voltei quinze dias depois, pelas
baguetes de gergelim e os bolinhos de chuva, juro. Ela pareceu ansiosa e me
seguiu com o olhar. Quando cheguei ao caixa, a tatuagenzinha estava totalmente à
mostra, um galho de rosa com flor e espinho; que linda tatuagem, obrigada,
gosta de música, eu também, meu cartão, liga amanhã, saio às 8...
Saímos
juntos durante meses, nos horários mais improváveis. Fui seu motorista particular, sugeri cores
para as cortinas, me fartei de struddle de chocolate, e nos separamos quando
ela partiu em lua-de-mel.
©
Abrão Brito Lacerda
27/02/18
Comentários
Postar um comentário
Gostaria de deixar um comentário?